Livraria Aberta celebra um ano a resgatar a história queer em Portugal
A livraria foi fundada por Paulo Brás e Ricardo Braun e pretende ser um “espaço sem julgamento”. No primeiro aniversário, que é celebrado esta semana, os criadores falam da possibilidade de entrar no campo da edição, mas reforçam que a prioridade é a sustentabilidade.
A Livraria Aberta celebra, esta terça-feira, um ano desde que abriu as portas à cidade do Porto. O espaço usa a curadoria de livros e avança para a edição própria para resgatar a história queer em Portugal e “fixar conhecimento”.
Em entrevista à agência Lusa, os criadores e gestores da livraria, Paulo Brás, formado em literatura, e Ricardo Braun, do teatro, explicam a vontade de entrar no campo da edição e também como “não há ainda uma grande preocupação em Portugal em escrever a história queer”.
“Nem há muitos livros publicados, ou os que existem esgotam e não são reeditados. Acontecem colóquios e as actas não são publicadas. O conhecimento não se fixa, parece que estamos sempre a começar do zero. Isto cria uma ideia geral de que ‘ah, os autores não existiram'”, acrescenta Paulo Brás.
O objectivo da livraria também passa por oferecer aos utilizadores “um espaço sem julgamento, em que as pessoas podem entrar como são, como querem e não sentem que têm de esconder ou parafrasear alguma coisa”. Ricardo Braun explica: “Dou sempre este exemplo: quando as pessoas nos fazem reservas de livros, e não podem elas próprias vir buscar... Um menino disse-nos: ‘O meu namorado vai aí buscar’. Será que numa outra cadeia de livreiros teria dito isto e não um amigo?”
A Livraria Aberta, sita na Rua do Paraíso, no Porto, desde o 28 de Junho de 2021, data que evoca a rebelião de Stonewall, em 1969, e o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Por estarem numa zona mais afastada do centro, referem que puderam “crescer com alguma paz de espírito”.
“Não é um sítio turístico, é uma rua de trabalho, com as suas próprias dinâmicas. Os senhores das obras, a florista, a senhora do café... Nós é que estamos aqui de novo, tivemos de nos adaptar à rua, estamos a trazer pessoas de propósito à rua, a apoiar outros negócios, como outros vão lá e descobrem a livraria. Também me agrada que o senhor de 80 anos do prédio em frente venha espreitar a montra, e a montra é diferente, não conhece os autores. Sentimos que estamos a fazer alguma coisa, não sabemos bem o quê”, analisa Paulo Brás.
Um espaço “poroso”, aberto a artistas e outras pessoas que queiram partilhar o local, de troca de referências e conversa, é “muito importante”, assim como a vontade de lançar mais eventos, continuar a investir na secção infanto-juvenil e intensificar o trabalho em rede com a comunidade e outros organismos culturais.
“Temos no Porto uma grande comunidade, mais nas áreas das artes performativas e visuais, uma comunidade alargada. Do ponto de vista literário, nunca tivemos nada especificamente queer. Não criámos isto para suprir uma lacuna. Acho que vem do nosso trabalho. Estudando literatura, eu já estudava o erotismo, a representação da sexualidade na literatura, o exílio. O Ricardo, nos espectáculos que fazia, já tratava autores mais marginais”, explica Paulo Brás.
Com um catálogo “bastante abrangente”, o seu universo aborda questões não só do espectro LGBT, mas também revela “uma preocupação interseccional de ter textos feministas, narrativas raciais e outro tipo de exclusões”.
Para o movimento LGBT no país, “é preciso é haver conhecimento, investigação”, um trabalho que fazem, pela livraria, ao ir às editoras encontrar os livros que lá estão, e que “noutro sítio se calhar ficam perdidos”.
“Mesmo da parte das editoras que vão lançando coisas que se encaixam no nosso catálogo, se calhar há menos medo, ou pudor, em que as sinopses já levantem ou assumam que os livros falem dessas questões”, lembra Ricardo Braun. As edições ligadas ao tema sofrem de um “código”, alerta, em que não se diz “que as personagens são LGBT, fala-se de amores proibidos ou tendências desviantes”, uma “maneira muito críptica de falar das coisas para não alienar ninguém”.
As editoras mais independentes, completa Paulo Brás, já criam “um diálogo”, a perguntar por livros especificamente queer que ainda não estão publicados em português, num país sem editoras em papel especificamente dedicadas. “Os próprios distribuidores foram percebendo que os livros LGBT não são só os livros com os meninos nus na capa a namorar, ou com LGBT na sinopse. Não são só esses. Um caso muito flagrante: na poesia, é preciso conhecer a obra, e por vezes a vida do poeta, para saber que o livro pode estar cá”, acrescenta.
A possibilidade de editar em nome próprio está “prevista desde o início”, mas ainda falta “dinheiro para isso”. A sustentabilidade é a prioridade antes de assumirem esse risco, com o qual querem “suprir lacunas no catálogo”, e aplicar o conhecimento que têm para acrescentar e não duplicar.
Editar é para poder “contribuir para fazer história” do movimento no país, “para mostrar que aquelas coisas existiam”, que “tiveram o seu impacto” e trazê-las de volta, contornando a dificuldade da falta de acesso quando algumas obras - ou autores - esgotam.
“Não tiramos da mesa e percebemos a importância de também ajudar de alguma maneira autores queer a tentar publicar. Há áreas pouco exploradas. Um autor trans português? Há poucas edições”, acrescenta Paulo Brás.
Ainda que tenha servido de terreno fértil para a concretização do plano de criação da livraria, a pandemia da covid-19 limitou o processo e inauguração do espaço. Agora, preparam uma “reinauguração”, com uma semana de programação em pleno “mês Pride”.
Entre a programação do primeiro aniversário está uma série de sessões informais moderadas por Paulo Brás, pelas 18h00 das segundas-feiras, até 1 de Agosto, sobre referências LGBTQ na literatura portuguesa. Assentarão num “formato de “não-aula”, uma coisa mais de partilha, leitura, descoberta”, explica Ricardo Braun, sobre referências da literatura portuguesa LGBT, que Paulo Brás assumiu quase como “um dado adquirido”.
“Essas conversas vão ser moderadas por mim e a ideia é eu trazer para a mesa cópias e excertos, [que] lemos e comentamos em conjunto. Não sou professor, e depois, porque eu venho inicialmente desse contexto mais académico, de comunicações, e não sinto que isso proporcione um diálogo. Até porque eu não sei quem vem a essas conversas. Posso estar a falar do António Botto e está aqui um ‘superfã’ do Botto e que quer falar sobre ele”, explica.
A artista visual norte-americana Kate Rhoades também estará na livraria no dia 29 de Junho, pelas 18 horas, para falar do trabalho desenvolvido em busca da população queer mais velha, “do apagamento das vidas LGBT na terceira idade”, “e, sobretudo, se percebeu onde encontrar as lésbicas do Porto”. A 1 de Julho, Amândio Reis e Daniel Ferreira apresentam “uma troca de leituras e interpretações mais ou menos queer de textos mais ou menos desviantes em relação a normas e expectativas que variam caso a caso” e no dia 2 é inaugurada a exposição Boys Apetite, de Miguel Flor, sobre “o desejo pelo sabor da juventude, o corpo masculino e as suas expressões mais espontâneas”.
Também há eventos planeados para Julho ligados à questão da Palestina e aos estudos pós-coloniais, em linha com a selecção abrangente, que vai de Virginia Woolf e Jorge de Sena e outros nomes consagrados, a autores ligados às questões coloniais, ao feminismo e outros temas interseccionais, que serve tanto de protecção como para agregar comunidades num mesmo projecto.
Para a frente, além da edição, é “importante que as pessoas percebam que a livraria tem de ser sustentável”, refere Paulo Brás, para que não corra o risco de ser “mais um projecto que dura dois ou três anos e desaparece”.
“Além disso, queremos intensificar a questão da programação, porque sabemos que são sempre momentos de cruzamento de muitas pessoas, e é importante para o ambiente que queremos na livraria”, acrescenta Paulo.
Para Ricardo, há pontes com outros agentes culturais e trabalho em rede que pode ser intensificado, e o espaço infanto-juvenil, demarcado do resto da livraria, continuará a ser uma aposta para que livros infantis dedicados à temática possam “facilitar a conversa”.
“Para que pais, tios, avós, possam falar descomplicadamente destas coisas às crianças. O facto de virem cá, porque querem falar de algo à criança da família é bom, é óptimo”, acrescenta.