Está a nascer uma arca de Noé com corais de todo o mundo
Na Austrália, começaram a ser recolhidos fragmentos de corais para se formar um biobanco com 800 espécies de todo o mundo. O grande objectivo é guardar e preservar a biodiversidade ameaçada que ainda existe – antes que seja demasiado tarde. Também se espera construir um edifício que seja a sede desta grande arca de Noé.
Já imaginou um espaço que junta 800 espécies de corais vivos de todo o mundo? Essa ideia deixou de ser pura imaginação: na Austrália, está a nascer uma arca de Noé de corais. Até agora, já foram recolhidos fragmentos de 120 das 400 espécies de corais duros da Grande Barreira de Coral, na Austrália. A ambição é conseguir coleccionar 800 espécies de diferentes locais e ter um edifício próprio até 2026 para as “guardar”. Mas, atenção, quem tiver aquários também pode armazenar alguns dos fragmentos recolhidos e fazer parte desta arca. Porquê tudo isto? Há recifes ameaçados e, antes que seja demasiado tarde, quer-se arrecadar toda a sua diversidade.
Dean Miller sempre gostou de recifes de corais, mas, para ser honesto, aquilo que o fascinava mesmo eram os tubarões ou as tartarugas que por lá andavam. Foi em 2016 que percebeu como os corais eram importantes e estavam numa situação vulnerável. Um grande fenómeno de branqueamento atingiu a Grande Barreira de Coral nesse ano e atingiu um terço dos corais de superfície desse ecossistema que se estende ao longo de cerca de 2400 quilómetros da costa Leste da Austrália.
O branqueamento acontece quando a água aquece mais do que o suposto: por causa desse aquecimento, as algas que vivem em simbiose com os corais (e lhes dão cor) começam a produzir substâncias tóxicas e deixam de fazer fotossíntese. Os corais acabam por expulsar as algas e a cor esbranquiçada do seu esqueleto fica visível. Além de deixar os corais sem cor, isso deixa-os desnutridos e pode levá-los à morte, porque ficam sem acesso aos nutrientes dados pelas algas através da fotossíntese. “Percebi que, se não cuidássemos deles, deixávamos de ter recifes de corais. Tornei-me um especialista de corais”, conta agora ao PÚBLICO Dean Miller, que dirige e co-fundou a Great Barrier Reef Legacy, uma organização sem fins lucrativos que trabalha na Grande Barreira de Coral.
Acabou por surgir a ideia de lançar um projecto que recolhesse todas as espécies de corais da Grande Barreira de Coral e que as mantivesse vivas em edifícios em terra. Além da conservação, esse projecto serviria também para ter fragmentos vivos, amostras de tecidos e material genético dos corais que apoiassem a investigação científica e esforços de restauro dos recifes. Assim surgiu o Living Coral Biobank – ou, se quisermos uma tradução para português, o Biobanco de Corais Vivos.
“Começámos a ficar com a noção de que o prazo [dos corais] se estava a esgotar. Então decidimos lançar um projecto que se iniciasse imediatamente e que fosse uma espécie de ‘apólice de seguro’ para a perda de biodiversidade que está a acontecer na Grande Barreira de Coral”, relembra Dean Miller. Mas o biólogo atenta que não é só este ecossistema na Austrália que está ameaçado, mas também corais de todo o mundo: “Temos visto extinções locais. Cada vez que temos um fenómeno de branqueamento estamos a perder os corais mais vulneráveis.” Quando se perde esta biodiversidade nos recifes (onde estão os corais), irão perder-se também funções nesse ecossistema. “Aquilo que podemos fazer é preservar o que ainda temos hoje e mantê-los vivos. É quase como o banco de sementes em Svalbard, mas para os corais do mundo. Queremos assegurar que todas as espécies de corais que estão vivas hoje estão disponíveis amanhã.”
O “padrinho dos corais” a ajudar
Oficialmente, o projecto começou em 2019. Desde então, tem-se vindo a recolher amostras de espécies da Grande Barreira de Coral. Até agora, o biobanco já conta com 120 das 400 espécies de corais pretendidas neste ecossistema. “Actualmente, temos um quarto da diversidade da Grande Barreira de Coral e prevemos que vamos ter 200 espécies, ou 50% do objectivo, até ao final deste ano”, espera o biólogo.
E como tem sido feita a recolha? Dean Miller diz que o processo é muito simples e é tudo feito com equipamento de scuba diving. E têm uma grande ajuda: a de Charlie Veron, que é conhecido como “padrinho dos corais” e descobriu e nomeou cerca de 20% das espécies de corais no mundo. “Ninguém os conhece tão bem como ele”, afirma, sem dúvidas, Dean Miller. Charlie Veron consegue identificar os corais mesmo ao nível da espécie. Por isso, a equipa do projecto recolhe metade de uma colónia de corais e mantém-na viva à superfície.
Numas instalações em terra ficam apenas fragmentos entre dez e 15 centímetros, que são “colados” numa base com um microchip. Aí, é possível reter toda a informação sobre cada um dos fragmentos. Essa informação vai sendo actualizada com dados sobre a taxa de crescimento do exemplar ou das condições do aquário onde fica guardado. Se forem mantidos nas condições correctas, a equipa do projecto espera que se mantenham assim por um tempo prolongado.
Por agora, os fragmentos recolhidos têm sido guardados num edifício provisório em Cairns (na Austrália), que tem capacidade para armazenar 8000 fragmentos vivos. “Esta instalação foi criada por doadores privados que se preocupam com o futuro da Grande Barreira de Coral”, indica Dean Miller. Lá, estão já espécies como a Favia favus (que tem muitas vezes uma forma esférica), a Goniopora djiboutiensis (com um aspecto florido) e a Lobophyllia corymbosa (que tem um formato irregular e que se assemelha ao aspecto de um cérebro).
Todos estes corais são duros. Inicialmente, serão recolhidos os duros e depois, talvez, se faça uma recolha dos moles. “Os corais duros são os mais importantes neste momento porque são os ‘construtores dos recifes’. Se os perdermos, perdemos todo o ecossistema”, esclarece o biólogo. Um coral duro é um animal que tem um esqueleto de carbonato de cálcio. “É como uma medusa com um esqueleto duro por baixo”, compara. Nos seus tecidos tem também uma bactéria simbiótica e uma alga, que lhe dá cor e é fonte alimentar. “Ao criar açúcares para o coral, a alga é responsável por 90% da sua fonte alimentar.” Os corais duros ficam nas águas pouco profundas e são compostos por outros subtipos de corais. Há centenas de espécies. “Quem mergulha pela primeira vez vê apenas rochas coloridas, mas na verdade são animais vivos. Esses corais formam uma grande estrutura viva no planeta, a Grande Barreira de Coral.”
Este biobanco está a começar por recolher amostras da Grande Barreira de Coral, mas não vai ficar por aqui. “O nosso plano é ter todos os corais do mundo”, ambiciona Dean Miller. Ao todo, perspectiva que 800 espécies entrem nesta arca de Noé. “Queremos ter nas nossas instalações todas as espécies de corais do planeta.” Até de Portugal.
Pode estender-se a Portugal
Para guardar todas as amostras de corais, já foi idealizado e desenhado um edifício, que ficará em Port Douglas, na Austrália. Nas imagens divulgadas sobre essas futuras instalações podem ver-se aquários e tanques com corais rodeados de cientistas, mas também de pessoas a olharem para eles. Visto de fora, o local assemelha-se a um coral.
Se tudo correr como planeado, o edifício do biobanco deverá estar pronto em 2025 e estar completamente operacional em 2026. Dean Miller diz-nos que esse local será acessível e terá objectivos educativos, comunitários e até turísticos – além dos científicos, claro. “Poderemos ver todas as espécies vivas e ver a conservação a acontecer, mas também se poderá perceber porque é que dizemos que os recifes de coral estão em risco e o que podemos fazer para ajudar a salvá-los.”
Para a sua construção, serão necessários 70 milhões de dólares australianos (cerca de 45 milhões de euros). Dean Miller diz que ainda não têm financiamento suficiente para essas instalações definitivas. “Tentámos ter financiamento do Governo [australiano], mas não conseguimos. O maior financiamento que recebemos até agora é de uma fundação holandesa privada que quer garantir que os corais são protegidos. Temos tido mais interesse de outras partes do mundo do que na Austrália”, revela o biólogo.
Em breve, espera lançar programas para que se possa financiar o projecto e atrair doações. Mesmo assim, se não se conseguir construir o edifício ou se os prazos não forem cumpridos, Dean Miller diz que “não é o tudo ou nada”. “Não estamos dependentes [das instalações que serão construídas]. Somos capazes de recolher corais e conseguir atingir os nossos objectivos de conservação. Estamos a construir uma grande ideia.”
Todos podem fazer parte dessa ideia. Além das doações, pode mesmo “adoptar-se” um fragmento de um coral e ajudar assim o projecto. Afinal, calcula-se que para conseguir formar toda a colecção de corais serão necessários três milhões de dólares australianos (mais de dois milhões de euros). Quando se patrocina essa amostra de coral, a pessoa está a pagar para que nas instalações ele seja cuidado e para a manutenção do próprio edifício. Há ainda outra forma de integrar o biobanco: pessoas ou instituições que tiverem aquários ou tanques podem albergar fragmentos de corais desta arca de Noé. “Em Portugal, na Noruega, nos Estados Unidos ou na Ásia podem também tomar conta da Grande Barreira de Coral. Queremos recorrer à ciência-cidadã para nos ajudar.”
Dean Miller avisa que estamos a ficar sem tempo para salvarmos os corais: “Provavelmente, temos entre dez e 15 anos para fazer algumas mudanças grandes e radicais na forma como enfrentamos as alterações climáticas [e a influência no aquecimento da água do oceano] e isso ditará o futuro que queremos para os recifes de coral. Neste momento, o futuro que se prevê não é fantástico e, por isso, estamos a fazer o projecto do biobanco.” O biólogo destaca que, sem dúvida, o aumento e a dependência dos combustíveis fósseis e a “incapacidade” na transição mais rápida para as energias renováveis estão entre as grandes ameaças aos recifes de coral. “Estamos a ficar sem tempo muito depressa.”