A Uva-Cão vale por si própria e é um bom ácido tartárico natural
Do laboratório que é Casa da Passarella, temos a segunda edição do varietal Uva-Cão. Vem com uma recomendação para os mais sensíveis à acidez, mas não morde.
Por causa do terroir, do património vitícola, do conceito de vinho de parcela e do pensamento livre e disruptivo do enólogo que comanda todo o projecto, a Passarela é um caso à parte no Dão. E, ainda por cima, nem sequer falta imaginação e humor nos seus rótulos. O branco que destacamos da linha Fugitivo é um varietal da Uva-Cão. Não se conhece bem a origem desta casta, mas há uma coisa que toda a gente fica a saber quando prova um bago de um qualquer cacho: a acidez é tão elevada que parece que nos vai cair um ou dois dentes. Por isso mesmo, e tendo em conta os comilões de uvas que passavam pelas vinhas, os produtores do Dão colocavam a casta na extrema das propriedades. Costuma dizer-se que o medo guarda a vinha, mas no Dão era mais a Uva-Cão. E, em consequência, o rótulo deste Fugitivo vem com um carimbo que, à laia daqueles que se vê na entrada de certas propriedades, faz o seguinte aviso: “Cuidado, Uva cão”. Carimbo com o rosto de um cão que nos recorda obviamente o Serra da Estrela.
Questões de protecção dos vinhedos à parte, o enólogo Paulo Nunes está encantado com a casta por duas razões: primeiro, porque anda a estudar com detalhe o comportamento dos vinhos ao longo do tempo (“quero perceber como evolui e que tipo de experiências posso fazer com ela”) e, segundo, porque anda a testá-la como um acidificador natural na fermentação com castas tintas. “No fundo, não estou a fazer nada de novo, visto que quando percebemos que o encepamento da casta andaria entre 5 a 10 por cento do total das castas, ela estaria aqui para equilibrar os mostos”, diz o enólogo. Donde, o objectivo do criador dos vinhos da Casa da Passarela é chegar a 10 por cento do total da área da propriedade. Isto é, 6 hectares (neste momento está em metade porque começou há pouco tempo a multiplicar o material vegetativo necessário).
A novidade na Passarela está em perceber como é que a casta se comporta em garrafa e que tipo de solos prefere. Homem muito habituado a reflectir e a pôr em causa certas ideias feitas do mundo do vinho, as experiências que desenvolve com a Uva-Cão ou outra qualquer casta têm por base a necessidade de aprofundar um diálogo permanente entre a viticultura e a enologia. “Temos de assumir de uma vez por todas que, em certa medida, a enologia chegou a uma encruzilhada. Neste momento, não há muito mais a descobrir na adega, mas há muito por fazer na vinha. Ou seja, eu só posso evoluir na adega se perceber muito bem como é que a casta se comporta na vinha a partir de diferentes variáveis: solos, clima, exposição e outros. Um vinho bem conseguido é o resultado de um trabalho de correlação entre muitas partes. Sabemos todos isso, mas raramente trabalhamos desta forma”, diz-nos, continuando com o exemplo da última vindima. “É certo que foi uma situação atípica face aos anos anteriores, mas julgo que terei passado 90 por cento do tempo na vinha e 10 por cento do tempo na adega. A ideia de que o vinho nasce na vinha não é só um slogan. Faz mesmo a diferença”.
De regresso à Uva-Cão, Paulo Nunes entende que a casta tem um perfil aromático algo neutro, destacando-se pela acidez. Mas, lá está, em matéria de aromas isso não é muito diferente do Encruzado quando novo. Vai na volta, teremos, no médio prazo, uma boa companhia para o Encruzado, o Bical e o Cerceal.
Nome Casa da Passarella O Fugitivo Uva-Cão Branco 2020
Produtor Casa da Passarella
Castas Uva-Cão
Região Dão
Grau alcoólico 13 por cento
Preço (euros) 26 euros
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Não se apresentando como um branco exuberante, recorda-nos os aromas das tílias que andam neste momento floridas em todo o lado, à mistura com ligeiras notas de borras de estágio. Na boca, aqui sim, sente-se e de que maneira uma personalidade bem ácida. É vinho para se ir provando ao longo dos anos.