Não finjam que não sabem
Neste momento, na Etiópia, país de onde vêm todos os nossos antepassados, pois aqui nasceu a humanidade, estamos perante a maior crise alimentar das últimas décadas. Temos mesmo que pôr este assunto nas nossas cabeças. Podiam ser os nossos filhos.
Gostava de vos convidar a vir comigo. É uma viagem bonita, é uma viagem ao coração da humanidade, e não é longe, é logo ali ao virar da esquina. Tenho a certeza de que já foram mais longe, mesmo que apenas nos vossos pensamentos. Agora venham aqui: Lalibela. Conhecem? É uma pequena cidade que fica a mais de 2500 metros de altura.
O nome vem de um rei com o mesmo nome, que um dia subiu aos céus e trouxe um recado de deus para construir igrejas que se parecessem com as nuvens por cima das quais caminhavam nesta conversa. E então, nas montanhas do Norte da Etiópia, o rei Lalibela entrega-se à missão da sua vida, e com a ajuda de centenas de milhares de homens e outros tantos anjos, todos juntos, começam a construir, ou melhor a esculpir, ou melhor ainda a escavar, picando pedra maciça para que toda a igreja é feita como se de um túnel na areia se tratasse, mas com dezenas de metros de altura e uma igreja escavada na pedra lá dentro, com portas, janelas, várias salas e ornamentos, tudo esculpido na pedra dura, e duram até hoje intactas.
Quem passa à superfície apenas vê o maciço de pedras gigantes que parecem nuvens, tal como prometeu o rei a deus, e quem se aproxima e lá entra perde-se nos seus encantos. O primeiro europeu que viu tal maravilha terá sido um padre missionário chamado Francisco Alvares, que no âmbito das viagens de Pêro da Covilhã escreveu no ano de 1520 no seu diário de viagem algo como: “sobre estas construções não escreverei porque ninguém acreditará em mim, e serei acusado de mentiroso...”, tal foram a beleza e a surpresa que o invadiram.
A história, as estórias, a espiritualidade, o misticismo, a vista panorâmica de uma África bonita até ao infinito, o pôr do sol cor de chama ardente, e o sal da Terra; as pessoas.
O mais surpreendente é que no meio de uma população extremamente pobre, as crianças vão todas vestidas da mesma cor para a escola. Cor esta que varia consoante as idades. É tão bonito ver esta palete de cores vestidas em sorrisos, brincadeiras, correrias e olhares curiosos para o mundo. Recortes de cara finos, olhos profundos castanhos, e pele de diferentes tons de chocolate.
Aqui se cruza a África negra, com a África árabe, daí que vejamos vários tons de mistura de melanina e de feições que nos aguçam a curiosidade. No cabelo desenham-se trancinhas que formam ornamentos que parecem labirintos de um jardim da realeza. E se olharmos com atenção, alguns têm tons laranja no meio do cabelo castanho. Sabem porque é que têm o cabelo cor de laranja? Tive que rebobinar alguns conhecimentos esquecidos da faculdade de medicina. Chama-se doença Kwashiorkor que, no dialecto do Gana em que foi descrita a doença, se traduz “a doença que aparece à criança quando chega um novo bebé” ou a “doença da criança deposta”, e consiste num deficit de proteína e vitaminas, ou seja, desnutrição, ou seja, fome.
E, neste momento, na Etiópia, país de onde vêm todos os nossos antepassados, pois aqui nasceu a humanidade, estamos perante a maior crise alimentar das últimas décadas. Se temos algum pingo de humanismo, as nossas atenções deveriam estar apontadas para o Corno de África: Etiópia, Somália, Sudão do Sul e norte do Quénia, estão perante uma crise alimentar que pode matar milhões de pessoas se não agirmos já.
Se não somos racistas, se não somos xenófobos, se não discriminamos pessoas pela sua cor de pele, ou localização geográfica, então temos, mas temos mesmo que pôr este assunto nas nossas cabeças. Podiam ser os nossos filhos.
Depois de períodos de seca alarmantes causados por fenómenos ambientais secundários às alterações climáticas, seguiram-se dois anos de pandemia onde a ajuda humanitária sofreu as piores das consequências. E, agora, temos o bloqueio da saída de milho e trigo dos portos da Ucrânia, catapultando este problema para níveis arrepiantes para quem tem coração. E claro, as guerras que nós não conhecemos: o Sudão do Sul está em guerra, o Norte da Etiópia assim o está, e a Somália não sabe o que é paz desde os anos 90 do século passado.
Estima-se que cerca de 17 milhões de pessoas estejam em risco de morrer à fome nesta região. Não há adjectivos que cheguem para descrever o que é uma mãe a olhar, impotente, para o seu filho a morrer, lentamente, por algo tão simples de tratar como a fome.
Só na Somália, em 2011/12 morreram 260.000 pessoas porque a comunidade internacional reagiu tarde e não prestou atenção aos sinais de alerta, sinais esses que agora estão ainda a soar mais alto e a ajuda prevista em termos monetários não chega a 20% do estimado ser necessário. (Dados da FEWS NET, Famine Early Warning Systems Network)
Como evitar que a nossa família fique a chorar lágrimas de sangue? Programa Mundial Alimentar, Action Contre la Faim, Médicos Sem Fronteiras são alguns dos melhores exemplos, mas acima de tudo o que nós precisamos é de trazer esta informação para dentro do nosso coração, para dentro das nossas reflexões, para dentro das nossas opiniões, tomadas de posição e consciência colectiva.
Eu disse que era uma viagem bonita, e ao coração da humanidade, não disse é que era fácil. Mas acreditem que é bonito fazer parte da solução, até porque se não o fizerem serão parte do problema.
Qualquer um de nós sabe tratar a fome. É só querer.