Hangares - Aviso à Navegação, um livro-viagem que só quer salvaguardar a ria Formosa
O cenário “idílico” deste livro ilustrado é uma ilha que são três ilhas com um universo cultural, histórico e natural “super-rico”. Ana Bossa passa lá parte do seu tempo — sem água potável nem energia eléctrica — desligada de tudo o resto.
“Dez anos passados do final da Grande Guerra, Ti Manel Labsome armou a sua barraca de apoio à pesca, fixando poucos anos mais tarde residência definitiva no sítio dos Hangares. Foi guarda e responsável pelo património da Junta Autónoma dos Portos do Sotavento do Algarve. A seu cargo tinha a manutenção do equipamento, o depósito de água, o poço e a casinha, o marégrafo, as embarcações fundeadas a poente, pinturas e caiação. Trabalho para todo o ano.” O pioneiro tinha que ser uma das coordenadas sentimentais deste livro-viagem que Ana Bossa escreveu, desenhou e viveu ao longo dos anos — “Jaime tinha 13 anos no primeiro Verão, agora tem 18” —, cruzando a sua própria memória e o presente com os valores culturais e identitários da ria Formosa e a “urgência em salvaguardá-los”.
“Cá estamos.” Um certo dia, e antes de se desmaterializar por culpa do “peso nas costas do ano cheio de rotinas, trabalho, trânsito e barulho”, Ana galgou quilómetros para aterrar na ilha em frente a Olhão e a Faro, na língua de areia que são três ilhas, mas que afinal é sempre uma única ilha. “Aqui, estamos todos no mesmo barco, não há volta a dar! O idílico cenário desta acção é uma ilha, espaço de terra cercado de água por todos os lados.” Condicionados ou favorecidos? Eis a questão.
Hangares - Aviso à Navegação (Edições Afrontamento, gráficos da Playgroundatelier e apoios da Direcção Regional de Cultura do Algarve e da Câmara Municipal de Faro) sugere guiar o leitor pelas 160 páginas de um roteiro interpretativo, que o transportará na descoberta de um museu vivo, uma “história de amor entre o mar e a terra”, um “singelo contributo, favorável ao estabelecimento e afirmação do perfil cultural, de uma zona do país ausente em muitos mapas e desconhecida pela maior parte da população portuguesa”, explica à Fugas a autora do livro sem pretensões de ser escritora, mas que quis fornecer “ferramentas” a uma zona com um “universo histórico e cultural super-rico” e que “tem passado pelo tempo” como se não houvesse a “azáfama da procura de sítios novos para passar férias”. “Tem sobrevivido”, resume Ana Bossa, que tem neste livro “um animal vivo”, como dizia Aristóteles, um compêndio onde cabem guardiões ("quem guarda a ria, quem a entende"), uma criança que adora pescar, um destino de férias “anticonforto”, e “uma riqueza imensa” que se dilui na história daquela parte da ilha, dos Hangares, sítio de amaragem para hidroaviões franceses, de pesca de subsistência de atum, de cercos de arame farpado e de campos minados, de casas e casebres marcados e ameaçados pela demolição.
A história desenvolve-se a par da temática dos capítulos “artes de pesca”, direccionados metaforicamente para intensificar o desenlace da narrativa. Assim sendo, cruzam-se os apetrechos e designações da “apanha”, do “arremesso”, das “linhas e anzóis”, entre outros, com a estrutura de descoberta da ria Formosa, de origens, vivências, rotinas e memória, de beleza e riqueza ambiental e também de mitos.
A ideia do livro foi “juntar essas partes todas”, explica Ana, que vai lançando e riscando as ideias que saem do universo fantasioso que cresceu à medida que foi explorando a ilha e lhe foi juntando peças antropológicas — “quase mitológicas”. “Vais lá em Agosto e pensas ‘como é que ainda não construíram resorts?’ Não tens luz eléctrica. Tens poço e gerador. Estás desligado de tudo o resto. Não te sentes um turista”, descreve Ana Bossa (Olhão, 1978), que actualmente se dedica à direcção de arte na área do cinema e animação stop-motion, filmes publicitários e videoclips.
“A ria é um ser vivo altamente dinâmico, uma entidade em permanente mudança”, lê-se a determinado momento.
“Entretanto, no plano dos homens que habitam os Hangares, o barco da carreira que dá acesso à povoação da Culatra e do Farol passa de proa empinada, a cinco metros do cais, com ar altivo e sem parar, onde outrora atracavam os galeões a vapor. Culatra a leste, Farol na ponta ocidental, nos Hangares reina o esquecimento imposto. As infra-estruturas eléctricas, os canos da água potável e os esgotos passam por baixo dos nossos pés, a caminho das outras aglomerações habitacionais, sem nunca terem visto por aqui a superfície, sem nunca ousarem entrar nas habitações do núcleo primevo.”
Hangares é “uma coisa mal definida, um sítio mal definido”, repete Ana. “Um sítio muito próximo de terra e muito longe de terra”. Também é essa “a magia das coisas”.
“Não fossem estas e outras circunstâncias, a fazer lembrar uma Creta habitada por Arraúl, filho do guarda-mor das colunas de Hércules, talvez esta ilha de labirintos, mariscadores e lobisomens, fosse finalmente reconhecida e salvaguardada com a dignidade que se impõe, num museu vivo, inspirada pelos tantos guardiões que nessa habitam.”