Mário Lúcio na Gulbenkian: Cabo Verde clássico e universal

Com o concerto de Mário Lúcio na Gulbenkian, mais orquestra e coro, onde popular e erudito se cruzaram em harmonia, a música de Cabo Verde mostrou-se num patamar de clássico universal. E isso jamais se esquece.

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Mário Lúcio com o maestro e todos os músicos no final do concerto DR

Há estreias que constituem um marco e esta é, decididamente, uma delas. O concerto do cantor e compositor cabo-verdiano Mário Lúcio com a Orquestra e o Coro da Gulbenkian, em estreia absoluta na noite de 8 de Junho e com uma segunda apresentação a 9 de Junho, no Grande Auditório da Fundação, cumpriu as ideias-base do seu mentor: ser “uma epopeia estética e pioneira”, a par de um abraço fraterno. E, sob a direcção do maestro Rui Pinheiro, a orquestra seguiu com evidente prazer (visível nos olhares, sorrisos e gestos) o programa estipulado, numa atmosfera doce e apaziguadora como a voz de Mário Lúcio, o inspirador desta aventura.

Porém, apesar do calor dos aplausos, nem tudo correu bem de início. A voz do cantor começou por estar num nível demasiado baixo para “enfrentar” a orquestra, falha que seria felizmente rectificada mais adiante. E isso impediu que a estreia das quatro mornas por ele escritas em português (o que é raríssimo em Cabo Verde, ele próprio citou os dois únicos exemplos que conhece) tivessem o impacto desejado. Mesmo assim, foi bom ouvir Olha só, olha o Sol, Vem amor vem, Cai cai cai e Quando falo com você, todas elas com arranjos do cubano Miguel Nuñez, antes de Mário Lúcio empunhar o seu violão e cantar um tema seu, antigo, gravado em 2003 pelos Simentera (grupo do qual foi fundador) no excelente álbum Tr’adictional: Lua cheia, aqui com os naipes de cordas a fazerem-se ouvir em pizzicato e os sopros em fundo.

Seguiu-se, como prometido, um momento a solo, só voz e violão, onde cantou, primeiro, um tema de Abílio Duarte, Areia di Salamansa e Dor di amor, mais um tema seu, também escrito para os Simentera e por estes gravado no disco Cabo Verde en Serenata, no ano 2000. Até que, já com o coro Gulbenkian em palco (dezasseis vozes, oito femininas e oito masculinas), ecoou na sala o belíssimo Hino à gratidão, escrito e gravado em 2021 com o Zululand Gospel Choir, da África do Sul, e que aqui teve nas vozes do Coro Gulbenkian uma substituição à altura. Um grande momento, num tema que Mário Lúcio apresentou como “a minha peça maior” e onde crioulo e português convivem a par, num exercício de “namorar duas línguas numa só boca.”

Depois vieram, de novo com a orquestra e com o coro ainda em palco, alguns temas clássicos do cancioneiro cabo-verdiano, aqui com arranjos da guitarrista e compositora Élodie Bouny, que procurou “ler” nos instrumentos europeus as nuances e os caprichos da música crioula. A começar por Morgadinha, de B.Léza (com um efeito orquestral imponente), seguida de Oh Linda (de Ano Nobo), acompanhada só pelos naipes de cordas e pelo coro, Sorriso de Nha Cretxeu (de Francisco Fragoso e Djirga) e, por fim, a belíssima Força de Cretxeu (ou Força de Cretcheu, grafia mais difundida), de Eugénio Tavares, tida como a mais antiga das mornas.

O concerto fechou com mais duas canções de Mário Lúcio, Zita e a festiva Ilha de Santiago, que ele gravou em Mar e Luz (2004) e a que Mayra Andrade deu nova vida em 2013, no seu disco Lovely Difficult. É certo que Mário Lúcio tinha dito, antes do concerto, que ia prescindir em palco do quarteto de cordas tradicional de Cabo Verde, e na verdade prescindiu, mas ainda assim, a par da orquestra e do coro, tinha em palco também três músicos que vieram a seu convite: à esquerda, no palco, Jon Luz (guitarra e cavaquinho cabo-verdiano) e Telmo Sousa (guitarrista do Porto, um dos músicos que integra os Kriols, quarteto formado por Mário Lúcio para o acompanhar em vários espectáculos e com o qual está a gravar novo disco de originais que deve ser lançado ainda este ano); e à direita o percussionista Mick Trovoada. Os três completaram, nos momentos certos, a paleta sonora global que deu corpo a esta experiência.

Dois momentos do espectáculo JORGE CARMONA
JORGE CARMONA
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Dois momentos do espectáculo JORGE CARMONA

Embora o programa tivesse chegado ao fim, o concerto ainda se prolongou por mais alguns minutos, com a repetição de dois temas: Força de cretxeu, com redobrado ênfase; e Ilha de Santiago (“Ilha de Santiago/ Tem corpinho de algodón/ Saia de chita cu cordón/ Um par de brinco roda pión”), acompanhada a palmas sincopadas por grande parte da audiência que enchia a sala (onde se encontravam muitos cabo-verdianos e vários músicos), mas num momento em que já várias pessoas tinham saído, pensando que o espectáculo acabara.

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Mário Lúcio na foto de promoção deste espectáculo JORGE SIMÃO

Com este concerto, onde popular e erudito se cruzaram em harmonia, a música de Cabo Verde, já reconhecida no mundo pela sua identidade, mostrou-se num patamar de clássico universal. E isso, graças a Mário Lúcio e à Gulbenkian, é coisa que jamais se esquece, venha o que vier em seguida. Este concerto terá ainda nova apresentação, este 10 de Junho, no Teatro Joaquim Benite, e em Setembro de 2023 irá até Cabo Verde, às ilhas do Sal, São Vicente e Santiago.

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