Uma realidade estimulante para além da assistência estatal

Há muito que, enquanto sociedade, e com base nos facilitismos do senso comum, temos gerado e incentivado preconceitos no que diz respeito às pessoas que frequentam estas formações do IEFP. Esta concepção não atenta apenas contra a dignidade humana que todos os seres humanos merecem ver imaculada: ela retira-lhes capacidade de intervenção social e sensação de autonomia.

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Rui Gaudencio

Enquanto me preparo para a defesa pública da minha dissertação de mestrado, que decorrerá perto do final do mês, decidi ingressar numa formação promovida pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), no âmbito da animação sociocultural. O que me motivou a participar nesta iniciativa de curta duração (200 horas) baseia-se em três principais e distintas razões: as temáticas abordadas, que incluem organizações de apoio à comunidade, representação social da diferença, cidadania e globalização, entrelaçam-se com aquelas que estudei na minha licenciatura em Sociologia e agora trabalho também no mestrado em Ciências da Educação; a possibilidade de efectuar aprendizagens e, ao mesmo tempo, auferir alguns rendimentos que ajudem nas contas do dia-a-dia; e, por último, mas talvez mais importante, a oportunidade de estar do lado do formando para conhecer como são estruturadas as formações, na medida em que um desejo meu passa pela obtenção do Certificado de Competências Pedagógicas (CCP) a fim de poder leccionar conteúdos próximos das minhas áreas de conhecimento a pessoas que neles estejam interessadas.

Todavia, não redijo este texto para partilhar uma experiência pessoal sem qualquer espécie de ponto de reflexão. Defendo, aliás, que a vivência de uma acção de formação poderá ser o aspecto mais relevante para mim precisamente porque é esta dimensão de benefício que me conduziu ao momento actual de escrita. Há muito que, enquanto sociedade, e com base nos facilitismos do senso comum, temos gerado e incentivado preconceitos no que diz respeito às pessoas que frequentam estas formações. Partindo de uma discriminação de classe, tendemos a considerar que estes indivíduos são pouco qualificados, motivados e empenhados, desejam viver à sombra dos apoios estatais e, correndo de formação em formação, não têm perspectiva de emprego, ficando-se pela lei do menor esforço.

Esta concepção dos sujeitos que participam em acções de formação do IEFP não atenta apenas contra a dignidade humana que todos os seres humanos merecem ver imaculada: ela retira-lhes capacidade de intervenção social e sensação de autonomia. Como se houvesse quem sobrevivesse sem o apoio de qualquer outra pessoa, grupo ou instituição, a imagem da sociedade criada e reproduzida constantemente, que, numa visão maniqueísta, coloca trabalhadores (alegadamente independentes) contra preguiçosos (supostamente submissos às ajudas estatais), fomenta auto percepções de incapacidade e de demérito e conflitos interiores e até exteriores com terceiros, resultando numa marginalização tacitamente aplicada – porque muitas vezes não dita – destes indivíduos. Se a sua vida económica, pautada pelos parcos rendimentos que são frequentemente destinados às necessidades dos filhos ou dos pais, isto é, dependentes, exige já uma grande força e uma gestão ao mesmo nível de um empresário, as vidas social, cultural, educativa e até política são-lhes negadas como se se tratassem de participações sociais exclusivas das elites financeiras.

Ora, na lei, que deveria ser o espelho das nossas convicções colectivas, os direitos são possuídos por todos aqueles que contraem personalidade jurídica. Portanto, qualquer um de nós, ser humano, com faculdade de pensamento e de acção. A desmercantilização dos direitos e, consequentemente, da cidadania, implica, como afirma o sociólogo dinamarquês Gøsta Esping-Andersen, que cada cidadão deve poder decidir trabalhar ou não o fazer, devendo ser possível existir socialmente noutras esferas para além da participação no mercado laboral. Tal significa que os direitos não são uma coisa unicamente económica, mas nascem antes de uma afirmação e de uma expressão cidadãs que todos, enquanto integrantes de um país, devemos ter a permissão e ser capazes de accionar.

A cidadania implica, pois, uma dimensão individual que se conjuga com outra grupal. Pertencer e partilhar – duas palavras-chave de uma unidade de formação de curta duração que já terminei – constituem indispensabilidades na satisfação das nossas carências e ambições. Ora, haverá poucos contextos em que elas aconteçam de uma maneira tão cabal como no espaço de formação que tenho presenciado: aqui, cada colega transmite aos outros as suas dificuldades, as suas alegrias, os seus modos de viver, um pouco das suas casas, um pouco (mas substancial) de si. Nesta formação temos sido competentes na produção de cidadania como condição para o nosso reconhecimento enquanto agentes que têm direito à educação, à socialização e à inclusão social como processos universais de respeito por toda a humanidade. A título pessoal, eu próprio, que não sou de partilhar tão facilmente aspectos íntimos da minha vida, sobretudo da mais recente porque tem sido algo conturbada, tenho estabelecido uma comunicação de confiança na qual feitos e desfeitos têm chegado aos ouvidos e corações dos meus colegas, e os deles aos meus também.

A todos eles, agradeço a cordialidade e, mais do que isso, a simpatia e a amabilidade diárias que têm feito valer a pena esta experiência. Efectivamente, há preconceitos que urge dissolver das nossas mentes. Os dados que as ciências, sobretudo as sociais e humanas, nos fornecem a respeito desta realidade não devem ser usados como impulsionadores de hostilidades, e sim na qualidade de informações que requerem políticas sociais exigentes e eficazes no combate às desigualdades e às discriminações económicas e de classe.

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