O regresso

O que nos distingue é precisamente essa disponibilidade para ouvir.

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"Era eu e o meu cansaço. Ele e o seu desespero. Quando pensei que já tinha esgotado em mim as palavras, sobrava afinal a disponibilidade para o ouvir" Mag Rodrigues

“O comboio vai chegar a Lisboa com 23 minutos de atraso.” O aviso surgiu quando os telemóveis já tinham começado a tocar e estávamos na estação de Vila Franca de Xira. Há horas em que os minutos pesam, e esta foi uma viagem difícil. Trago já as saudades da minha mãe lembrando-me de cada detalhe: os canteiros cheios de cor que são vida nesta altura; depois as flores que enchem a casa e que estão ali também para eu as poder cheirar. A minha mãe incentiva-me: “E essa rosa?” É uma rosa lilás farfalhuda que tem um perfume que eu, se pudesse, trazia num frasco. Temos a Carla como aliada. Passou a cuidar da minha mãe, do jardim, da casa, e quando vou de visita já penso nas duas. Facilmente ficamos as três a conversar sobre a vida. A rirmo-nos de coisas que tentamos descomplicar. A fintar a existência que tem tantos espinhos como as rosas perfumadas. Não há perfume sem espinhos. Talvez seja isso.

21h23. A estação de Santa Apolónia está quente e deserta. Em Mindelo havia três pára-ventos na praia, tal era a nortada. O calor pesa-me ainda mais o andar lento, apesar da pressa em chegar a casa.

Sigo até aos táxis, e está lá um. Um apenas. E eu sou também a única a encaminhar-me para a fila que não existe. Eu e a minha mochila cheia de nada. Memórias trago-as na cabeça, e o cheiro da rosa lilás diluído no meu cansaço.

Faço sinal àquele que julgo ser o taxista, um homem debruçado sobre o separador onde se apoiam os que chegam.

Entro no táxi e digo que sim ao caminho que me propõe. Às vezes peço um caminho mais demorado e bonito, mas hoje aceito ir por aquele que não tranquiliza o olhar.

Ligo à minha mãe. Desejo-lhe uma noite boa.

Já me afastei do rio e o homem, começo agora a perceber, conduz de forma inconstante. Há nele algo de estranho, intuo. Primeiro penso (erradamente) se poderá ter bebido, mas vou cansada e deixo-me ir na dança descoordenada da pressa em chegar a casa.

Há um ziguezague que me assusta na Lisboa que janta nas esplanadas esquecendo que o mundo vive do avesso, e é nesse momento que ele me diz: “Desculpe, mas eu não estou bem.” Na verdade, eu também não estava, mas sabia que precisava daquele desfecho para que a noite não morresse nas 21h23.

Pergunto o que se passa, e ele ali na rotunda onde encrava a mudança, mas não o discurso, diz: “A minha mulher está no hospital.” Hesito por segundos na pergunta que se segue, mas deixo que a curiosidade dite o rumo desta viagem que nos estava destinada: “É grave?” E ele já com a voz sem controlo responde: “É muito grave. Tentou suicidar-se.”

Estamos a chegar a casa. Aponto para o prédio. Ele pára. Volta a debruçar-se, agora sobre o volante. Já sei quem me lembra, é muito parecido com Samuel Beckett. Tem uma pele morena sulcada como o Douro e onde deixa, por fim, escorregar uma lágrima. Já não sei que horas são. Sei que o único taxista que apanhou a única cliente do comboio atrasado confessa-se agora a esta estranha. “Envenenou-se. Disse muitas vezes que o faria. Eu tinha outra pessoa. Foi uma sorte nessa noite eu ter chegado às duas da manhã em vez das três ou quatro habituais. Chamei o INEM, os bombeiros. Vieram rápido. Tive muita sorte. E ela já saiu dos cuidados intensivos.” Abro a janela e estou quase sem palavras. Junto as poucas que tenho para as perguntas essenciais. Talvez tenha sido moralista? Não importa. Precisava de lhe dizer que a vida às vezes faz sentido: “Não acha que tudo isso foi um sinal?”

Lá estão as lágrimas dele nos sulcos cavados pelas noites longas. “Acho, acho. Quero muito ser feliz com ela. Vou agora vê-la.”

Se pudesse, abraçava-o ali naquele bafo quente misturado com o cigarro que lhe travou as angústias. Fechei a porta e ele seguiu veloz.

Eram 21h23. Não estava ninguém à minha espera senão ele. Santa Apolónia não arrotava magotes de gente (para lembrar o Palma). Era eu e o meu cansaço. Ele e o seu desespero. Quando pensei que já tinha esgotado em mim as palavras, sobrava afinal a disponibilidade para o ouvir. Senti-me viva por estar ali naquele exacto momento.

O que nos distingue é precisamente essa disponibilidade para ouvir. Para ver. Parar e ficar atenta ao homem com as lágrimas a fazerem o caminho da cara sulcada. A mulher estava no hospital. Sobreviveu à morte desejada.

Uma viagem com regresso.

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