No seio das políticas do corpo
Torna-se difícil acreditar que o meu corpo é meu. O meu corpo é campo de batalha. Nas suas curvas e contracurvas, vemos a labuta das guerras partidárias. O ar que lhe enche os pulmões é sugado pelo sistema patriarcal que o rege. As minhas costas são afagadas pelo paternalismo latente que diz que sabe o que é melhor para mim
O meu corpo continua a não ser meu.
Com a mesma descontracção com que nos dizem que o aborto foi um direito conquistado em 2007, tratando-se de um direito humano inviolável, também nos disseram que as nossas escolhas sexuais são índices de avaliação médica. Contudo, sublinhe-se, só a sexualidade feminina esteve a ser avaliada sob microscópio.
No passado dia 10, acordámos com a notícia de que uma proposta, que já tinha o parecer positivo da DGS, aguardava a aprovação do Ministério da Saúde. Falo da proposta que visava a criação de uma bonificação salarial anual para USF-B que apresentassem baixos indicadores de interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas a pessoas passíveis de engravidarem durante o seu período fértil, assim como baixos indicadores de DST em utentes femininas. No dia 11, como noticiado pelo PÚBLICO, um grupo técnico retira o aborto voluntário e as DST do quadro de indicadores de avaliação dos médicos e é emitido um pedido de desculpas. Hoje, continuo a sentir que me separaram do meu corpo.
Relativamente à proposta, via auscultação e palpação, rapidamente se remediou o que representava uma lesão grave nos direitos sexuais e reprodutivos femininos. Mas esta foi apresentada. A proposta teve um parecer positivo da DGS, não esquecendo. Tudo, quando, como apontou a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), “não deveria ter sequer sido considerada – nem agora, nem daqui a dez anos”.
Existem poucos momentos que nos fazem sentir que a única manifestação física que temos de nós e, consequentemente, o único elemento que deveria ser intrinsecamente nosso está fora do nosso alcance. A não ser que o nosso corpo seja objecto, espaço de discussão e causador de motins.
Torna-se difícil acreditar que o meu corpo é meu. O meu corpo é campo de batalha. Nas suas curvas e contracurvas, vemos a labuta das guerras partidárias. O ar que lhe enche os pulmões é sugado pelo sistema patriarcal que o rege. As minhas costas são afagadas pelo paternalismo latente que diz que sabe o que é melhor para mim. Do meio das minhas pernas, aparentemente poderiam sangrar uns trocos que parabenizam equipas médicas por não fazer o seu trabalho.
E no seio desta discussão, a ministra da Saúde Marta Temido diz que os direitos das mulheres nunca estiveram em causa. Dificilmente estariam, num país que apresentou taxas superiores à média no que toca a práticas hospitalares não recomendadas no domínio obstétrico, como definidas pela OMS, durante o primeiro ano da pandemia. De que direitos estamos, portanto, a falar? No campo da saúde, uma área da sociedade que se predispõe a servir e ajudar o próximo, a existência de violência e a eliminação da humanidade do paciente parecem-me um contra-senso. Além disso, parecem-me violações dos direitos mais básicos dos seres humanos.
No entanto, segundo a Ordem dos Médicos, a palavra “violência” foi descrita como sendo demasiado forte para descrever “situações de abuso físico ou verbal, falha de prestação de cuidados adequados, negligência, discriminação e/ou recusa de aceitação da autonomia da mulher”. Em Portugal, esta palavra ignóbil só é permitida à mesa, quando o acto cometido é demasiado gravoso para poder ser ignorado, não vá o diabo, de facto, tecê‑las.
Mas que outro nome usaríamos para falarmos de práticas como a manobra de Kristeller, e a execução de episiotomias sem a autorização da paciente? Que nome utilizaríamos para a desumanização da grávida, a experiência traumática do parto e a falta de cuidados pós-natais? Que nome utilizaríamos para práticas que põem em causa a saúde física e psicológica dos utentes? A Ordem dos Médicos sugere o termo “maus tratos”. Eu sugiro o termo “trauma”.
Em 1999, a minha mãe permaneceu sozinha numa unidade de cuidados hospitalares durante 12 horas, sem acesso a comida nem com direito a acompanhante, a aguardar que as enfermeiras se lembrassem da sua existência e que a levassem, finalmente, para a sala de partos. Em 1971, num dos confins rurais deste país, a minha avó deu à luz na cama da sua casa, tendo a minha bisavó como parteira, e uma experiência de parto traumática como companheira durante vários anos. Hoje, diríamos que a minha avó sofreu de depressão pós-parto e, apesar de lhe termos dado um nome, tal ainda não significa que a tratemos adequadamente, nem que evitemos situações potenciadoras deste quadro psicológico. Poderia recear estar a incorrer numa análise anacrónica, caso estas ainda não fossem realidades como nos comprovam muitos testemunhos como os recolhidos pelo Setenta e Quatro numa investigação recente sobre a violência obstetrícia.
Em Portugal, também quem já teve a coragem de decidir levar a cabo uma IVG deparou‑se com um processo desumano e humilhante, em que muitas vezes as mulheres são coagidas e forçadas a terem os fetos que na altura carregam, manipulando-as e culpando-as, empurrando-as para a verdadeira missão do corpo feminino – reproduzir. Enquanto máquinas de fazer bebés, curiosamente, somos também vítimas por termos engravidado. Enquanto máquinas de fazer bebés, ironicamente, os sinais da pouca consideração que se tem por quem engravida e a falta de escolhas que realmente nos são apresentadas amontoam-se.
Em Portugal, o período gestacional para a IVG é dos mais baixos, estando fixado nas dez semanas. Em Portugal, a violência sexual ainda não tem o estatuto de crime público, após vários projectos-lei terem sido consecutivamente chumbados. Em Portugal, a violação é definida em detrimento de critérios como a existência de violência e penetração. Em Portugal, o assédio sexual não é um crime autonomizado – falamos apenas de “importunação sexual”. Em Portugal, a Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contras as Mulheres e a Violência Doméstica) e as suas directivas ainda não foram totalmente transpostas para o direito nacional. Assim vivemos, tais Medusas no Palácio da Justiça.
Este corpo não é nosso. Não pode ser, quando chegámos ao ponto em que dizemos que não queremos saber da vida feminina – das suas decisões, da sua saúde física e psicológica, dos seus direitos primários. Este corpo que carregamos é apenas um número, uma punição, uma prisão.
Contudo, por mais que a realidade nos derrube e nos suprima nas suas garras, nós continuamos. Com os joelhos raspados, seguimos em frente. Agora, cometemos a loucura de falar e a voz já não nos falha, porque, algures, está uma outra mulher a dar-nos a mão. Já não temos de sofrer e sangrar em silêncio. O recuo da proposta apresentada na semana passada é prova destes novos tempos em que um pequeno espaço foi arduamente semeado para nós. A nossa tarefa é continuar esta labuta e fazê-lo florescer.
O meu corpo é político, mas a minha voz também o é – e essa é minha, minha, minha.