Dois homens de jazz numa noite com voz de mulher
A recente morte de Paulo Gil (1937-2022) traz à memória uma dessas noites onde simples acasos provocam encontros inusitados. No Hot, em 2018.
A mais recente edição da revista do Hot Clube (o número 17, de Março deste ano) é dedicada a uma despedida. O número anterior também já o fora, devido à morte de Manuel Jorge Veloso (1937-2019), assinalando a sua partida com um adequadíssimo título de standard: Everytime we say goodbye we die a little. Mas desta vez, passado o hiato ditado pela pandemia, o adeus “gravado” na Hot News foi outro: o sempre presente Luís Hilário deixara o seu posto. “Caiu em tentação e ‘reformou-se’”, explicava a revista, de novo num texto com título de standard (I’m getting sentimental over you) a anteceder uma série de depoimentos elogiosos, assinados por (nesta ordem) Inês Homem Cunha, Bruno Santos, Carlos Bica, Mário Franco, Jerónimo Belo, Paulo Gil e António Curvelo.
Voltando ao citado texto: “Para várias gerações jazzísticas o Luís era um dos símbolos do Clube. Era ele (e os seus cúmplices, Fernando e Zé Manuel) que nos recebia à entrada, era ele que nos servia ao balcão, era dele que ouvíamos as ‘últimas’ e as ‘próximas’ da programação musical e com ele trocávamos, ainda, impressões sobre os últimos discos ou o concerto de anteontem. Raros, raríssimos serão os músicos do jazz nacional que não lhe ‘passaram pelas mãos’. Paciente (quase sempre), metódico (sempre), com o Luís todos sabíamos ‘o que a casa gasta’. E o Hot contava com ele como ele contava com o Hot.”
Um dos que contavam com ele era Paulo Gil. “Quarenta e muitos anos de franca amizade que nos unem…”, escreveu Gil no texto a que chamou Olá, Luís Hilário: “Durante décadas, contribuíste para que me sentisse bem melhor nos meus tempos livres… Foram noites musicais impressionantes, muitas delas inesquecíveis, que nos permitiram aprimorar a nossa amizade.” A recente morte de Paulo Gil (1937-2022) traz à memória uma dessas noites, onde simples acasos provocam encontros inusitados. Estando em Lisboa, de visita, o musicólogo e jornalista brasileiro Zuza Homem de Mello, pensámos levá-lo ao Hot. Estávamos a 4 de Outubro de 2018 e nessa noite actuavam no clube a cantora Maria João e o pianista brasileiro André Mehmari.
Zuza ficou encantado com a ideia, até porque Mehmari era muito seu amigo e quis fazer-lhe uma surpresa. Para facilitar, marcámos um jantar de grupo ali bem perto, no Cascais Remo, frequentado habitualmente por muita gente do Hot. Paulo Gil estava a jantar sozinho numa mesa e, após breves apresentações, juntou-se ao grupo, onde creio que já estaria Luís Hilário (que saiu do restaurante mais cedo para pôr o clube a funcionar até abrir as portas). Falou-se de jazz, naturalmente, lembrando Paulo Gil que acompanhara por cá alguns ilustres brasileiros (músico do Bossa-Jazz Trio, com Marcos Resende e Bernardo Moreira, tocara com Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Nara Leão no Teatro Villaret em 1968), derivando a conversa para muitas e variadas histórias e outras tantas experiências, contadas e comentadas com humor, uma característica comum a Zuza e a Paulo Gil e que ambos ali descobriam com prazer. A noite prosseguiu no Hot, a conversa idem e a música fez o resto, com a encantatória voz de Maria João a iluminar o espaço para deleite da plateia, juntando-se-nos a dada altura também João Moreira dos Santos (Zuza surpreendeu mesmo André Mehmari, que o julgava em São Paulo e não em Lisboa). A despedida foi efusiva, depois de algumas trocas de contactos.
Dois exactos anos após este encontro, a 4 de Outubro de 2020, Zuza Homem de Mello morria inesperadamente em sua casa, em São Paulo, vítima de um fulminante enfarte do miocárdio. Mas antes disso voltara a Portugal, em Abril de 2019, para uma conferência na Casa da Música, um concerto (por ele idealizado) com a Orquestra Jazz de Matosinhos, a estreia do filme Zuza, Homem de Jazz e uma conversa no auditório do Grupo Desportivo e Cultural do Banco de Portugal, programada por João Moreira dos Santos após a conversa daquela noite no Hot.
Quanto a Paulo Gil, frequentador assíduo do clube, deixou-nos no dia 11 de Maio, também sem que ninguém o esperasse. Muitos músicos e muita música terão sido ouvidos paralelamente por ambos, Gil e Zuza, ainda que separados por milhas de distância. Naquela noite lembraram uma ínfima parte, bastando isso para que entre os dois se estabelecesse um elo: a História não lhes passara ao lado. Dois homens de jazz, para glosar o título do filme de Zuza, e orgulhosos desse estatuto. O texto de Paulo Gil dedicado ao programador (agora reformado) do Hot começava com “Olá, Luís Hilário” e terminava com um “Adeus, Luís Hilário, até breve.” Como em 2020 muitos disseram a propósito de Zuza, digamos agora por Paulo Gil: “Até sempre!”