Morreu Paulo Gil (1937-2022), um dos “históricos” do jazz em Portugal
Músico de jazz (baterista, cantor de scat), crítico, compositor e promotor de espectáculos, Paulo Gil morreu em sua casa, em Lisboa, esta quarta-feira. Tinha 84 anos. O funeral é na sexta-feira.
A notícia circulou primeiro em telefonemas de amigos, na noite de quarta-feira, e esta manhã foi confirmada por Leonel Santos nos sites jazz.pt e no jazzlogical.net: Paulo Gil, um dos nomes históricos do jazz em Portugal (primeiro como músico, depois como divulgador, crítico e promotor de espectáculos), morreu na quarta-feira, em sua casa, depois de na noite anterior ter estado naquela que era a sua outra casa, o Hot Clube, na Praça da Alegria. Uma casa de que era frequentador assíduo, depois ali ter entrado pela primeira vez (segundo disse numa entrevista) no Outono de 1954 e de ter sido proposto para sócio em Junho de 1955 pelo fundador do clube, Luiz Villas-Boas. Mais tarde, viria a integrar a direcção do Hot (de meados dos anos 60 a finais dos 70) e, num curto período (Abril de 1973 a Dezembro de 1974), a ser seu director.
Nascido Paulo Santos Gil, em Lisboa, a 8 de Novembro de 1937, começou a interessar-se pelo jazz nos anos 40, por influência do pai, ouvindo as rádios Voice of America e BBC de Londres, segundo a entrada biográfica (assinada por Pedro Roxo) incluída na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, dirigida por Salwa Castelo-Branco (ed. Círculo de Leitores, 2010). Não só pelo jazz, mas também pela música erudita. Estudou na Academia de Amadores de Música (1948-1949) e teve aulas de bateria e percussão com outro dos primeiros bateristas de jazz em Portugal, Luís Sangareau (1923-2009).
Já como baterista amador, e ainda segundo a Enciclopédia, “teve oportunidade de tocar com músicos de jazz de passagem por Portugal, com destaque para Dexter Gordon, Don Byas e Pony Poindexter”. A sua carreira passaria também pelo estrangeiro: “Em Londres actuou com John Taylor, integrado na Jazz Center Society, e em Paris com Michel Grailler. Enquanto membro do Bossa-Jazz Trio, que constituiu com Marcos Resende e Bernardo Moreira, participou em espectáculos com cantores brasileiros no programa televisivo Zip-Zip e na apresentação de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Nara Leão no Teatro Villaret (1968).”
Como músico, foi dos primeiros a tocar no Hot Clube, como recorda outro dos “históricos”, o pianista Barros Veloso (hoje com 92 anos), no livro-entrevista António José de Barros Veloso, Uma Vida, Vários Mundos, de Margarida Almeida Bastos (ed. By The Book, 2021): “O Hot Clube era um local de convívio, onde se jogava canasta e pouco se tocava”, diz o pianista, descrevendo o ambiente do Hot à época. Até que alguns, poucos, começaram a tocar: “Éramos nós [Barros Veloso e José Luís Tinoco], o Ivo Mayer e o Paulo Gil. […] Foi a partir dessa altura que o Hot Clube ganhou animação permanente, coisa que não tinha anteriormente.”
No documentário Barros Veloso: 90 anos de vida, 70 anos de jazz, de Fernando Mendes & João Moreira dos Santos (disponível no YouTube), conta como foi a sua aproximação ao Hot, onde tocava bateria e também cantava, não com palavras, mas em scat, com Barros Veloso ao piano.
Integrando, como músico, os grupos Status (1970-1974), Plexus (1974-1976) e Magikyce (1976-1978), dedicou-se também à crítica musical nas revistas Rádio & Televisão, Século Ilustrado, Flama (nas décadas de 50 e 60) e, nos anos 70, no Música & Som e no Diário de Notícias. Entre os anos 1971 a 1986 esteve ligado à Valentim de Carvalho, como responsável editorial para a área do jazz e da música erudita. Teve programas na rádio (VivoJazz, RDP-Antena 1, 1980-1995) e na televisão (Som da Surpresa, RTP 2, 1986-1990) e, como produtor, desde os anos 1960, esteve ligado à realização de concertos de jazz (Noah Howard, Miles Davis, Betty Carter e outros) e em 1996 ligou-se ao Seixal Jazz como co-produtor e director artístico, sendo ainda colaborador do festival Angra Jazz (nos Açores) desde a primeira edição, em 1999, e (segundo o jazz.pt) do Ciclo Internacional de Jazz de Oeiras e do Jazz na Figueira da Foz.
Paulo Gil compôs também música para filmes, como A Passagem, de Manuel Costa e Silva (1970) e Perdido por Cem, de António-Pedro Vasconcelos (1972), este editado pela primeira vez em DVD em Janeiro de 2022.
Depois de Raul Calado (1931-2018), Manuel Jorge Veloso (1937-2019) e Duarte Mendonça (1931-2021), a morte de Paulo Gil é mais uma perda entre os nomes históricos no panorama do jazz em Portugal. Leonel Santos, no texto que escreveu no jazzlogical.net como reacção à morte de Paulo Gil (notícia que recebeu, incrédulo, pelo telefone), diz a terminar: “Há pessoas que nos habituamos a encontrar ao longo dos anos e que, de certa forma, acreditamos que são eternas; até que batemos de frente, violentamente, com a realidade. A verdade é que, para mim, o Jazz, o Hot Clube e o Paulo Gil confundem-se: quando comecei a ir ao Hot, nos anos 70, ele já lá estava, e quando voltar ao Hot, esta ou a próxima semana, vou olhar para o lugar dele à espera de o ver.”
Inês Homem Cunha, presidente do Hot, escreveu no Facebook do clube: “Todos os dias entrava antes da hora. Batia à porta ruidosamente e ia directo ao seu lugar. Dava um jeitinho à mesa e sentava-se estrategicamente, na última ponta do sofá, num ângulo preparado com cuidado. Daí falava com os músicos, cantava, esgrimia baquetas imaginárias, dava indicações a quem estava a tratar do som. Era quase como estar no palco. Em pouco dias alguém vai entrar, um turista, um distraído, e vai sentar-se naquele lugar. Mas de hoje em diante há um espaço que vai ficar vazio.”
Quando o Hot Clube completou 70 anos, a revista Hot News teve uma edição especial de 120 páginas (Hot News 1948-2018) onde, além do editorial da presidente do conselho directivo do Hot, Inês Homem Cunha, e do texto introdutório do editor convidado, António Curvelo, foram incluídos textos de autores e músicos e várias gerações. Entre ele, Paulo Gil. Vale a pena recordar, agora, o primeiro parágrafo desse texto, Jazz, boxe e ji-jitsu… no Hot:
“Asseguro-vos que me encontro bem do ponto de vista mental, mas ouvir jazz ‘ao vivo’ tem muito a ver, frequentemente, com a prática do boxe ou do ju-jitsu, bem mais do que muita gente pode imaginar. Na minha juventude assisti a dezenas de aulas e combates de boxe e tive oportunidade de estudar e praticar ju-jitsu, com japoneses, durante longo tempo. Vem-me à memória que os bateristas Elvin Jones, Art Blakey e Roy Haynes foram inúmeras vezes comparados, em palco, na movimentação do corpo e dinâmica imposta ao instrumento, a pugilistas ou praticantes de artes marciais... Acho que têm muito em comum, até porque a ‘improvisação’, a imaginação imediata e a rapidez de pensamento se encontram, quase sempre, presentes no jazz, no boxe e no ju-jitsu. E quando não estão, o ouvinte, o adversário ou o espectador sentem-no!”
No Facebook do Hot informa-se que o funeral de Paulo Gil será na sexta-feira, 13, na capela do cemitério do Alto de São João em Lisboa. Velório às 14h, missa às 17h e cremação às 17h30.