Nenhum muro é demasiado alto

“Liberdade ou morte”, escreveu o falecido João Rendeiro numa carta enviada ao Tal&Qual em 22 de novembro de 2021, um mês antes de ser detido na África do Sul. Há dias, João Rendeiro conquistou a liberdade com a morte. Nenhum muro é demasiado alto. De uma forma ou de outra.

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“Na nossa prisão, os condenados roubavam como cleptomaníacos, defecavam onde lhes apetecia, lutavam, guinchavam, e eram capazes de qualquer outro ato hediondo e desprezível”, escreveu Xu Hongci Ye Jinghan/Unsplash

Xu Hongci era um promissor aluno da principal universidade de medicina de Xangai, na China, quando, em 1957, não resistiu ao apelo de Mao Tse Tung dirigido aos intelectuais chineses: “Deixem florescer uma centena de flores, deixem que uma centena de escolas de pensamento se manifestem.” Xu, membro do Partido Comunista desde os 14 anos, entusiasmou-se e fez um enorme cartaz onde criticava o fracasso da liderança de Mao no desenvolvimento de uma China moderna e democrática.

Por esta ousadia, Xu foi declarado um “direitista” e, de acordo com a famosa política de educação e reforma pelo trabalho, condenado (tal como 550 mil dos seus compatriotas) a trabalhos forçados em minas e campos de reeducação (laogai). Seguiram-se 14 anos de constantes atentados à sua vida, mercê de duríssimos e ininterruptos trabalhos forçados, violentos espancamentos, tortura psicológica e física, humilhações, doença e fome.

Xu Hongci tentou fugir três vezes. E por três vezes fracassou. Acabou por ser bem-sucedido à quarta tentativa. Viajou através da China durante mais de um mês e refugiou-se na Mongólia. Após a morte de Mao, Xu foi autorizado a regressar a Xangai, onde se estabeleceu, em 1984, com a mulher e os dois filhos. Enquanto trabalhava como professor, elaborou um manuscrito de 380 mil caracteres (572 páginas escritas à mão, que incluíam alguns mapas, diagramas desenhados à mão dos vários locais de prisão, desenhos exemplificativos e diversas notas) em que relata as pungentes memórias do seu encarceramento e todos os detalhes da espetacular fuga com que conquistou a liberdade. A publicação original do manuscrito, intitulado Chongchu laogaiying (Fuga do Laogai) aconteceu em 2008 graças a uma pequena gráfica de Hong Kong. Foram vendidos 800 exemplares. Xu morreu em 2008, pouco depois da publicação da obra. Tinha 74 anos.

A versão inglesa, intitulada No Wall To High (Nenhum muro é demasiado alto), cujas 314 páginas devorei em dois dias do longo confinamento de 2020, foi traduzida por Erling Hoh, um escritor chinês residente na Suécia que tropeçou na história de Xu Hongci em meados de 2011 numa biblioteca de Hong Kong. Posteriormente, Hon obteve o manuscrito original da mão da esposa de Xu Hongci e traduziu-o, dando-o a conhecer a todo o mundo. Ou quase. Não se cansem a pesquisar: não o encontrarão à venda na China, naturalmente. “A tragédia da China“, assegura Xu numa passagem do seu livro, “é que ela nunca permitirá que as pessoas falem a verdade”.

Mas mais do que o regime de outrora ou atual, interessa-me, por ora, a provação de Xu Hongci. “Às portas da morte, o homem pode tornar-se um animal e abandonar todos os princípios morais que estabeleceu no decurso da sua vida. Na nossa prisão, os condenados roubavam como cleptomaníacos, defecavam onde lhes apetecia, lutavam, guinchavam, e eram capazes de qualquer outro ato hediondo e desprezível.”

Enquanto lia o relato de Xu, questionava-me em cada página, para não dizer em cada linha ou palavra, como reagiria se fosse sujeito durante uma só hora às tormentas que Hongci viveu durante 14 anos. Vai daí, fiz uma autoanálise, tentando recordar-me quantas vezes me havia queixado nas últimas 24 horas. Haviam sido poucas, felizmente, mas por coisas tão insignificantes que fiquei envergonhado comigo próprio. Resolvi, então, permanecer mais atento a mim próprio e às pessoas com quem passava mais tempo e a outras com quem mantenho contactos frequentes e, ainda, àquelas com que me cruzo na pastelaria, no supermercado, no restaurante ou no trânsito, observando o seu comportamento, expressões faciais, gestos, palavras, queixas.

Proponho-vos a realização deste exercício. É curioso como a nossa ansiedade e queixas diminuem à medida que vamos tomando consciência dos nossos pensamentos e comportamentos e dos comportamentos daqueles com que convivemos e nos cruzamos. O hábito de encarar o bom e o mau, o conhecido e o desconhecido, o triunfo e a derrota, o feio e o bonito, entre outros opostos, com a mesma naturalidade constitui uma forma de desenvolvimento da aceitação, da adaptação às situações, do controlo das expectativas e, muito importante, da aquisição de paciência. A paciência que Xu teve. A paciência de que todos precisamos connosco próprios e uns com os outros.

Tão notável quanto a paciência, resiliência e persistência de Xu Hongci é a sua capacidade de encontrar a felicidade na desgraça — “Após algum tempo, comecei a gostar de descer para a mina. Como havia apenas uma entrada, sem qualquer possibilidade de fuga, os guardas nunca entravam na mina, a qual se tornava num mundo livre onde podíamos desfrutar de um lugar relativamente seco e isolado para nos sentarmos, fumar e conversar.” — e de aceitar a sua condição, deixando-se levar pelos acontecimentos, mas sempre sem se resignar.

Um mês depois da derradeira fuga, quando se encontrava a poucos metros da fronteira com a Mongólia, dialogou consigo próprio: “Agachei-me no chão durante alguns minutos, despedindo-me da minha pátria, devastada pelo tempo e pela dor. Não verti lágrimas. Estava apenas triste e zangado, confiante de que mais cedo ou mais tarde o povo chinês se levantaria para se livrar do jugo da tirania de Mao e estabelecer uma nação democrática. Disse a mim próprio: ‘Nesse dia, voltarei’.” A promessa reforçava outra, realizada anteriormente: “Hei-de recuperar a minha liberdade ou morrer a lutar por ela”.

“Liberdade ou morte”, escreveu o falecido João Rendeiro numa carta enviada ao Tal&Qual em 22 de novembro de 2021, um mês antes de ser detido na África do Sul. Há dias, João Rendeiro conquistou a liberdade com a morte. Nenhum muro é demasiado alto. De uma forma ou de outra.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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