Vamos falar sobre a perda gestacional? A perspectiva de uma enfermeira

Enquanto enfermeira, vivo e lido com casos de perda gestacional quase diariamente no serviço onde trabalho. E confesso que não tinha noção dos inúmeros casos que existem. A perda gestacional continua silenciada, pouco reconhecida e valorizada. É experienciada por muitos casais, mas falada por poucos.

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Falar de perda gestacional é abordar um tema muito especial e muito “querido”. Especial por tudo aquilo que é, por tudo aquilo que envolve, por tudo aquilo que me dá enquanto mãe e enfermeira, mas também pelo que ainda falta e urge fazer.

No Dia do Enfermeiro, que se assinala a 12 de Maio, quero dizer que ser enfermeiro é também estar presente em momentos menos felizes e menos bons. Nas maternidades não existem só situações boas e positivas, não nascem só bebés saudáveis, lindos e maravilhosos. É também nas maternidades que surgem situações muito delicadas. Diagnosticam-se mortes in-útero, malformações incompatíveis com a vida, situações de gravidez não evolutiva, situações de gravidez ectópica, situações de abortamento espontâneo, trabalhos de parto espontâneo antes da viabilidade, entre outras.

Os enfermeiros são cruciais em todo o processo de perda gestacional. Questiono-me, inúmeras vezes, se temos consciência de que marcamos todas as pessoas que se cruzam connosco nos mais pequenos e simples gestos? Muitas das vezes acho que não. E falhamos com estes casais em particular. A forma como dizemos, como fazemos, a postura que adoptamos, os julgamentos e críticas que fazemos são muitas vezes o alvo das queixas dos casais, não tanto o tipo de procedimento ou protocolo que tiveram que seguir.

Enquanto enfermeira, vivo e lido com casos de perda gestacional quase diariamente no serviço onde trabalho. E confesso que não tinha noção dos inúmeros casos que existem. A perda gestacional continua silenciada, pouco reconhecida e valorizada. É experienciada por muitos casais, mas falada por poucos.

Está presente diariamente em todas as instituições hospitalares. Então, porque é que a mantemos escondida? É necessário preparar os enfermeiros para lidarem com estas situações especiais. É necessário formar enfermeiros mais capazes e mais conscientes de que é preciso marcar a diferença e ser diferente. É preciso que percebam que cada caso é único, que os cuidados têm que ser diferenciados e personalizados, que têm de procurar saber mais sobre cada um deles. É necessário olhar com atenção para as instituições hospitalares e assumir que pouco se faz neste âmbito e que muito pode ser feito.

Deixemos de atender estes casais junto de grávidas que esperam consultas e ecografias. Deixemos de fazer consultas de Psicologia para culpabilizar os casais. Deixemos de desvalorizar as suas queixas e necessidades e apenas medicar para que esqueçam aquela dor. Chega de fazer os casais esperar por uma resposta para o caso que estão a vivenciar, sozinhos. É urgente mudar o acompanhamento que é dado em todo o processo e, para isso, é preciso constituir equipas de profissionais de saúde que realmente queiram dar a “cara” por um tema tão especial.

Muitas das vezes, os enfermeiros adoptam uma postura de distanciamento e evitamento destes casos, ou abordam o tema de forma leviana e pouco empática, porque temem comprometer-se. Não querem mostrar-se frágeis por não saberem o que dizer, não estão preparados para dar resposta. Claro está que a forma como lidamos com estes casais depende muito da sensibilidade, da empatia, de experiências pessoais e profissionais. Mas, na maioria das vezes, não é preciso dizer nada, mas sim apenas estar presente no silêncio, sermos uma figura de apoio a quem podem recorrer. Só temos de dar a mão, um abraço, ser o colo.

Também eu tenho dificuldade em lidar com estes casos, pois, na verdade, não há formação sobre como acompanhar situações de perda gestacional. Ninguém me preparou, ninguém se preocupa com a forma como os enfermeiros se sentem perante os inúmeros casos a que dão resposta. Somos profissionais de saúde, mas também somos humanos: eu sou enfermeira e tenho dois filhos.

Durante o internamento, deparo-me com o silêncio dos casais. Vivem o momento muito isolados, muito sozinhos. Não digo muito, mas estou presente e todos recebem o meu abraço apertado. Só quero que saibam que não estão sozinhos, que podem contar comigo. E quando rumam a casa, o meu contacto estará com eles para que me possam enviar uma mensagem em qualquer momento. Eu própria envio mensagem para saber como estão. Ficar um mês ou mais à espera de uma consulta no hospital é desumano.

Acredito que a mudança está nas mãos de quem trabalha directamente nestes locais de contacto com os casais que sofrem estas perdas. Sou uma enfermeira de coração cheio com uma gratidão imensa por todos os casais que marcam a minha história.

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