A imensa dor das coisas insignificantes

Creio que o meu avô entendeu o que eu disse como uma traição. Simplesmente por ter sido dito por mim. O significado de quem o disse atribuiu-lhe significado. E o insignificante tornou-se significativo.

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O meu avô materno, João de Oliveira, foi o meu primeiro herói DR

O meu avô materno chama-se João de Oliveira. Sem mais nomes ou apelidos. O meu avô materno foi o meu primeiro herói. Desde que me lembro que quero ser como ele. Sigo-o para todo o lado e imito muito do que faz. Quero ser como ele em tudo. Admiro muitas outras pessoas e tenho outros heróis. Mas o meu avô foi o primeiro. E não há herói como o primeiro. Reparo agora que, no início do texto, escrevi que o meu avô se chama João de Oliveira. O tempo verbal pode causar estranheza a quem o conhece, visto que o meu avô já morreu.

— Não seria melhor utilizar outro tempo verbal? “Chamava-se” em vez de “chama-se”? — pergunto a mim próprio em voz alta.

Olho pela janela em silêncio e tento recordar-me da data exata em que o meu avô deixou de partilhar espaços connosco.

— Mas o avô deixou de se chamar João de Oliveira, por acaso? Não. O nome dele é esse. Era assim há dez anos, era assim ontem, é assim hoje. O nome de alguém nunca deixa de o ser. Vivo ou ido.

O passado nunca está morto, nem sequer é passado, intervém William Faulkner do topo da estante.

— Tirou-me as palavras da boca, senhor Faulkner. As coisas que vivemos não são passado, estão connosco hoje, são presente. Ao recordá-las, damos-lhes vida, tornamo-las presente.

A memória é o tesouro e o guardião de todas as coisas, acrescenta Marco Túlio Cícero da pilha de livros de história a aguardar ordenamento cronológico.

— Tal e qual! Levamos tudo connosco. E, às vezes, que pesado é o baú da memória… Obrigado, senhor Cícero. Aliás, obrigado a ambos!

Onde acedemos à memória? No presente, claro. O passado é construção, assim como o presente. Construímos o passado quando o recordamos. Por vezes, não o recordando com exatidão, desenhamo-lo como queremos, do ângulo que preferimos, no sentido que mais nos convém. Construímos o passado, vivemo-lo. Hoje. De que outra forma se explica que suspiremos quando recordamos um beijo ou um abraço forte da pessoa amada? Ou que sintamos um frio gélido percorrer-nos o corpo ao relembrar um susto de morte? As memórias são o passado que se torna presente. Tão intrigante e tão fascinante é esta relação entre o passado e o presente e entre o pensamento de hoje que faz renascer, com a mesma intensidade, a emoção de outrora.

As minhas recordações instantâneas de algumas pessoas que amo e com relevância decisiva na minha construção como pessoa são amiúde coisas insignificantes. Coisas às quais não dei muita importância, de forma consciente pelo menos, quando sucederam. A constatação deste padrão fez com que passasse a prestar mais atenção à aparente insignificância das recordações. Não fosse dar-se o caso de estar a escapar-me alguma coisa. Até porque o que é ou que nos parece insignificante pode não sê-lo para outros. Uma insignificante centelha pode provocar um enorme incêndio.


Adoro comer cogumelos. Cogumelos de várias espécies e feitios. É um mundo vasto, o dos cogumelos. Mundo esse que exploro da melhor forma que sei: comendo cogumelos de variadíssimas formas. É no risoto que mais gosto de os degustar. Risoto de cogumelos. Salivo só de juntar este par de palavras.

O meu avô nunca comeu cogumelos. Não porque não gostasse. Simplesmente, nunca provou.

— Se calhar tem medo que sejam venenosos — sussurrou a minha mãe quando lhe perguntei por que o avô não comia cogumelos.

— Ó avô, então tu não comes cogumelos? — gritei da cozinha para a sala num exagerado tom de censura e indignação.

Silêncio.

Dirigi-me à sala.

— Ó avô, então tu não comes cogumelos? — insisti, replicando o tom.

Desta vez, o silêncio foi ilustrado por uma lenta rotação da cabeça para o lado. O meu avô fez de conta que não ouviu. Fingiu, simplesmente, que nenhuma afronta acontecera. O querido neto nunca o exporia daquela forma em frente de toda a família. Era domingo. Aos domingos comíamos sempre todos juntos. Até à pandemia aparecer era sempre assim. Um dia voltamos a fazê-lo.

Voltei para a cozinha.

— Mãe, porque é que está uma taça de morangos sem chantilly na mesa? (lá em casa, os morangos eram servidos com uma camada de chantilly por cima).

Silêncio.

— Então, mas hoje ninguém me responde a nada?

— Ó João, tu não paras? —, desesperou a minha mãe. — O teu avô acha que o chantilly é uma espécie de cola e por isso não come, pronto — desvendou. — Tu também não gostas de uma série de coisas — rematou, pensando calar-me de vez. (Com o tempo, passaram-me as esquisitices com a comida)

Dirigi-me novamente à sala.

— Ó avô, então também não comes chantilly?

O mesmo silêncio, a mesma discreta rotação de cabeça, os olhos a fugirem dos meus.

Não insisti. Alguma coisa me disse que me devia calar. Na altura, não percebi o que era. Hoje, sei que foi por ter percebido a angústia que lhe ia na alma através do um brevíssimo momento em que franziu as bochechas do rosto, trincou ao de leve o lábio superior e tamborilou os dedos na mesa. O corpo fala. O corpo de cada indivíduo fala numa língua própria. E entendê-la é difícil. Mas é disto que me lembro. Insignificante na altura, motivo de forte arrependimento quando, décadas mais tarde, liguei a reação exterior do meu avô ao que lhe ia na alma. Não foi uma insignificância. Como nunca o é quando vemos ameaçada a nossa mais incontestável certeza. Creio que o meu avô entendeu o que eu disse como uma traição. Simplesmente por ter sido dito por mim. O significado de quem o disse atribuiu-lhe significado. E o insignificante tornou-se significativo. Um significativo que não fazia sentido para o meu avô, incapaz de organizar o que ouvira no blindado contexto avô-João-neto-João — “A percepção sem conceito é cega”, disse Kant —, sustentado por um amor sublime e uma dedicação mútua que se prolonga até aos dias de hoje.

Para mim, a cegueira do meu avô foi tão momentânea quanto insignificante. Tanto assim foi que só dela me apercebi muitos anos depois de ocorrida. E quase por acaso, ao trincar um cogumelo que me soube menos bem. E aí doeu. Doeu muito. Mas já me perdoei.


Recentemente, no fim de tarde do último mês de Abril, à janela da cozinha, apreciava a luz a extinguir-se pouco a pouco. Uma réstia de fulgor alaranjado e vermelho espalhava-se pelo céu a meia-luz, anunciando a noite. De repente, a memória: um relógio de parede parado porque nunca mais ninguém lhe deu corda. Uma taça cheia de morangos em cima da mesa. Intacta. Insignificante, se não significasse tanto.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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