Depp vs. Heard. Provar que a ex-mulher foi violenta não vai dar ao actor a vitória em tribunal

O mediático julgamento lançou um debate entre clínicos sobre a diferença entre agressão e autodefesa. Mas, mesmo que consiga provar que Amber Heard foi violenta, é pouco provável que Johnny Depp ganhe a acção por difamação.

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Para conseguir ganhar o processo, Johnny Depp tem de provar que as alegações no artigo são falsas Reuters/JONATHAN ERNST

Duas semanas intensas em Fairfax, Virgínia, com a equipa jurídica de Johnny Depp a construir o caso em torno da tese de Amber Heard ser o elemento violento da relação. Para tal, colocou o actor no banco das testemunhas a afirmar “jamais bati numa mulher na minha vida”, a relatar episódios de violência que sofreu, tendo-se apoiado nos testemunhos de funcionários que ouviram discussões ou dos agentes que responderam à chamada de Amber Heard, em Maio de 2016. Os polícias declararam não ter observado qualquer trauma na face da mulher que, dias depois, apresentou uma providência cautelar contra o actor na qual juntou uma fotografia da sua cara magoada, afirmando que o marido lhe tinha batido com um telemóvel.

Depp, que, ao contrário do que muitos tinham vaticinado, parece ter conquistado a simpatia do júri, tendo arrancado até alguns sorrisos, descreveu-se “destruído”, disse que perdeu tudo com esta acusação e que Amber é que era violenta, tendo sido ele a vítima de abusos, relatando que a ex-mulher o esbofeteou, o empurrou, lhe atirou um comando de televisão à cabeça ou um copo de vinho à cara. Durante uma discussão específica, um mês após o casamento, em Março de 2015, Depp disse que a actriz lhe atirou uma garrafa de vodka que falhou e acertou na parede. A segunda garrafa, porém, maior, acertou-lhe na mão, decepando-lhe a ponta do dedo médio da mão direita, acusou o actor.

No entanto, o contra-interrogatório acabou por lançar uma diferente luz sobre o actor, com a divulgação de mensagens que Depp enviou a amigos, nas quais tratava a ex-mulher com extrema violência, exprimindo o desejo de a ver morta — e até de a matar. “Vamos afogá-la antes de a queimarmos”, escreveu ao amigo Paul Bettany (o Vision dos filmes do universo Marvel).

A estrela de Hollywood, entretanto caída em desgraça (foi dispensado da Disney e acordou a saída da franquia Monstros Fantásticos), justificou-se com a sua mania de usar “humor negro” para se expressar e, muito importante para a sua relação com os jurados, revelou remorsos ao declarar: “Não estou orgulhoso de nenhum dos termos que usava nos momentos de raiva”.

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Amber Heard Michael Reynolds/Pool via REUTERS

Abuso mútuo ou autodefesa?

O depoimento que terá feito maiores estragos à imagem de Amber Heard poderá ter sido o da psicóloga clínica e forense Shannon Curry, contratada pela equipa jurídica de Depp. Sob juramento, Curry disse ter efectuado uma avaliação psicológica da actriz, utilizando documentos do caso, registos médicos, tratamentos de saúde mental e registos áudio e vídeo, além de se ter encontrado com a ré nos dias 10 e 17 de Dezembro, num total de 12 horas. “Os resultados da avaliação da sra. Heard apoiaram dois diagnósticos: perturbação estado limite (borderline) da Personalidade e perturbação de personalidade histriónica”, testemunhou Curry.

Já a psicóloga clínica e conselheira matrimonial do casal, Laurel Anderson, descreveu a dinâmica da relação entre Johnny Depp e Amber Heard de “abuso mútuo”, denunciando que Heard “atacava para o manter [presente na discussão]”. No entanto, durante o contra-interrogatório, a terapeuta esclareceu que Heard lhe disse que “ripostava” depois de Depp ser violento fisicamente.

No entanto, a ideia de “abuso mútuo” levou a uma discussão no meio de quem luta contra a violência doméstica. Ruth Glenn, presidente e CEO da Coligação Nacional Contra a Violência Doméstica (NCADV), contestou, em declarações à NBC, a existência de “abuso mútuo”, defendendo a existência de um “agressor primário”. “Vou abusar como reacção? Não, vou defender-me como uma reacção”, avaliou.

Por seu turno, ao mesmo órgão, Janie Lacy, uma psicoterapeuta especializada em traumas de relacionamento, disse que as relações extremamente voláteis podem ser descritas como “abuso mútuo”, uma dinâmica que tem muitas vezes a sua origem em traumas anteriores.

Ao PÚBLICO, no contexto das denúncias de “comportamento ameaçador” do ex-presidente do Sporting Bruno de Carvalho com a cantora Liliana Almeida num reality show, o director do Departamento de Violência Familiar do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra, João Redondo, onde se trabalha com vítimas, mas também com agressores — não se consegue ajudar um sem conhecer o outro, esclareceu —, explicou que a ideia-chave passa por “ter controlo e poder”, ainda que tenha ressalvado que não existe um estereótipo de agressor nem de vítima, sendo vital reconstruir a história clínica de cada um, explorando a adversidade na infância, para perceber um pouco mais sobre a relação.

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Depp interpôs uma acção de 50 milhões de dólares contra Heard EPA/JONATHAN ERNST / POOL

Poderá Depp ganhar?

Johnny ​Depp interpôs uma acção de 50 milhões contra Amber Heard, acusando a ex-mulher de o ter difamado quando escreveu um artigo para o The Washington Post, em Dezembro de 2018, em que relatou ser uma sobrevivente de abusos domésticos.

No texto que levou o ex-casal a uma batalha judicial milionária, não se identifica o agressor pelo nome, mas, defende o advogado de Depp, Benjamin Chew, era claro que Heard se estava a referir ao actor. Do seu lado, a actriz não nega que de facto falava sobre o ex-marido, mas observa que, por um lado, apenas escreveu (na realidade, apenas assinou, soube-se esta semana em tribunal, sendo o texto da autoria da União Americana das Liberdades Civis) a verdade e que, por outro, a sua opinião está protegida como livre expressão ao abrigo da Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Ou seja, respondeu com uma contra-acusação, pedindo uma indemnização de cem milhões de dólares (92,6 milhões de euros).

Para conseguir ganhar o processo, Depp tem de provar que as alegações no artigo são falsas, como também que a ex-mulher agiu com dolo, ou seja, com o objectivo de o prejudicar. O que é, à partida, um problema, depois de, no Reino Unido, Depp ter perdido um caso contra o The Sun — o tablóide publicou um artigo que rotulava o actor de “espancador da mulher” e o tribunal deu como provada a violência contra a actriz, considerando assim que a expressão não constituía difamação.

Ou seja, mesmo que Depp consiga demonstrar que a ex-mulher foi violenta, dificilmente convencerá o júri de uma das suas primeiras afirmações, de que “jamais” bateu numa mulher. E basta a dúvida para deitar por terra todo o caso.

Por fim, o caso, sendo de difamação por causa de um artigo publicado num órgão de comunicação social, tem uma nuance inusitada: Depp nunca processou o The Washington Post, ao contrário do que seria de esperar, o que torna esta acção por difamação uma batalha mais conjugal do que judicial.

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