A futebolização da política
Há um excesso de futebol falado, designadamente na televisão. Certo comentariado político analisa a política, não pelas ideias ou ideologias, mas pela futebolização da melhor táctica para ganhar.
Nota prévia: quem escreve estas linhas gosta muito de futebol e irrita-se com a sobranceria de certos “intelectuais” que ostentam com desprezo o desconhecimento total — fingido ou não — dos aspectos mais elementares do futebol. Quem escreve estas linhas entende, porém, haver um excesso de futebol falado, designadamente na televisão. Entende ainda ser a linguagem futebolística, mormente em Portugal, uma das mais estereotipadas.
O treinador nunca faz cálculos. Tão-pouco olha para a tabela classificativa. Tem mais que fazer: Ele e a equipa não são humanos; são máquinas: só pensam “jogo a jogo”, só prometem trabalhar e trabalhar.
O jogador é desprovido de vaidade. Impressiona: pode marcar três, quatro, cinco, seis golos, que isso não lhe diz nada — importa, isso sim, a vitória da equipa. O mérito, quanto ao mais, é de todos, ainda que ele tenha feito defesas impossíveis ou marcado o golo decisivo ou desequilibrado a partida.
(Confesso que nunca percebi bem a expressão: “O mérito vai todo para a equipa.” O mérito será todo da equipa, de toda a equipa, mas não se desloca — presumivelmente, em passo acelerado — para toda a equipa quando o jogador fala.)
Outra expressão dita e escrita a toda a hora, e que é tudo menos português correcto: “líder à condição”. Digam e escrevam: “provisório”. “À condição” não é nada, porquanto não se diz qual é a condição, ficando a palavra pendurada e manca. Além disso, não temos “à condição”; temos “na condição de que”, “com a condição de que”, “sob condição”. Quem diria que haveria jogo à condição de que não chova?!
Também na política há jargões. Está por nascer o político que não aja pensando sempre no “superior interesse do país”. A crítica ao nacionalismo vem sempre acompanhada do mesmo adjectivo: o nacionalismo exacerbado! A crítica ao anticomunista vem sempre acompanhada do mesmo adjectivo: o anticomunista primário! “Antifascismo”, “antifascista”, “anticomunismo”, “anticomunista”, “anti-racismo”, “anti-racista” circulam com abundância, mas desconhecem-se “anti-socialismo” ou “anti-social-democracia”, por exemplo.
Curioso é ver imagens, comparações, metáforas directamente importadas do futebolês na linguagem pública, mormente política.
Diga-se, antes de mais, que certo comentariado político analisa a política, não pelas ideias ou ideologias, mas pela futebolização da melhor táctica para ganhar: com esta proposta, rouba votos ao eleitorado do Partido X; esta mudança à esquerda ou à direita poderá fazer perder votos ao centro; a disputa pelo terceiro lugar está renhida, a melhor estratégia para o ganhar passará por...
O Presidente da República e a oposição mostram um cartão amarelo ao Governo; os candidatos nos debates “metem golos” e também “autogolos”, e até têm “entradas a pés juntos”; Mário Centeno é o Ronaldo das Finanças; os partidos criticam o Governo por ficar em fora-de-jogo (não ser em offside já é uma sorte), “Fulano é um ponta-de-lança da política”. Os pontas-de-lança, diga-se, abundam na linguagem política.
Um exemplo (entre milhares): o Expresso, em 19 de Outubro de 2019, no artigo “Salários e emprego são chave do novo Governo”, de Filipe Santos Costa, explica-nos que: “Passado um mês, o ponta de lança [sic] da economia protagonizou uma espetacular [sic] ultrapassagem ao ponta de lança [sic] das finanças.” Outro exemplo: em 7 de Junho de 2021, ficámos a saber pelo DN que o então vice-presidente do Governo Regional da Madeira é “um ponta-de-lança da política”.
Em Julho de 2018, numa entrevista para a RTP, no programa 5 Para a Meia-Noite, o primeiro-ministro português, António Costa, explicou ser “o Governo” “toda uma equipa, como o Benfica”. A pergunta era: “Quem é o Jonas [ex-goleador do Benfica] do seu Governo?”
Até o videoárbitro (VAR) já entrou com naturalidade na linguagem política (em Portugal e no Brasil, por exemplo): eu não disse isso, senhor deputado, era preciso o VAR aqui.
A título de exemplo (e o que não falta são exemplos), em 6 de Setembro de 2017, no Jornal de Leiria, num artigo de João Carvalho Santos, lemos: “E se fosse possível ter um sistema de vídeo-árbitro [videoárbitro] na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu?” E continua por aí fora perguntando que “lances decisivos” dos deputados “seriam revistos” pelos árbitros. Passando para o Brasil, lemos em 25 de Janeiro de 2022, no jornal A Folha, na coluna de Fausto Júnior, o seguinte título: “ELEIÇÃO NO BRASIL PARA PRESIDENTE NÃO TERÁ “VAR” COMO NO FUTEBOL?” [maiúsculas do original.]
Tudo isto é encontrável por quem quiser procurar e por quem tiver os olhos e os ouvidos atentos.
E…
… no dia 13 de Abril de 2022…
… o ministro das Finanças português, Fernando Medina, decidiu dar um grande contributo para a futebolização da política. A propósito do Orçamento do Estado, declarou o ministro ao jornal Público:
“Nem tudo pode caber neste primeiro orçamento. Quando a selecção começa a jogar[,] não estamos à espera que marque quatro golos nos primeiros quatro minutos. A mim, já me estão a pedir que marque 5-0 nos primeiros cinco [minutos] […].”
Tenha calma, Senhor Ministro. Como disse um conhecido jogador de futebol: “Prognósticos só no fim do jogo.”