“Censos” permitem recolher dados sobre milhares de borboletas em Portugal

Contar borboletas é essencial para avaliar o seu estado de conservação. Em três anos de projecto em Portugal continental, registaram-se quase 30 mil borboletas vistas por todo o país – mais dez mil avistadas na Madeira desde o Verão passado. Há borboletas ameaçadas, em risco de extinção – e as alterações climáticas agravam o problema.

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Borboleta no Parque Natural do Alvão Teresa Pacheco Miranda

As borboletas são um bonito sinal da chegada da Primavera e das temperaturas amenas, mas são também indicadoras da perda de biodiversidade no mundo dos insectos. Ainda que se saiba que estão a desaparecer – e as alterações climáticas são uma das responsáveis –, só é permitido dizê-lo com certeza com anos e anos de monitorização destes insectos coloridos. Para ajudar, foi lançado em 2019 um “censos” de borboletas de Portugal, um projecto de ciência-cidadã em que qualquer pessoa pode dar um passeio e anotar as borboletas que encontra pelo caminho. Ao fim de três anos, contabilizaram-se mais de 29 mil borboletas por todo o país.

“Temos estado a crescer de ano para ano”, diz a coordenadora do projecto, Eva Monteiro. E há que continuar para que se possam ver as tendências: “A monitorização só faz sentido se for realizada a longo prazo.” Como os arquipélagos portugueses não estão integrados neste censos, a Madeira lançou também um projecto regional de contagem de borboletas que já permitiu ver mais de dez mil borboletas desde que começou, no Verão de 2021. O coordenador regional desse projecto, Sérgio Teixeira, concorda com a necessidade de se pensar a longo prazo: “Só assim é possível fazer monitorização e comparar tendências e evoluções das espécies ao longo do tempo, nos mesmos locais.”

Em Portugal, estima-se que cerca de 10% das borboletas diurnas possam estar em risco de extinção. Na Madeira, há mesmo uma espécie de borboleta (a grande-branca-da-madeira, Pieris wollastoni) que não é vista desde a década de 1980. É uma das espécies-alvo deste “censos”. Sérgio Teixeira lembra-se de ver esta borboleta a voar quando era criança: “Era muito comum, havia por todo o lado. Nas áreas agrícolas havia aos milhares. Ela desapareceu de repente, foi alguma coisa”, conta. Para uma espécie ser considerada extinta na natureza, é necessário que passem pelo menos 50 anos desde a sua última observação e que tenha sido consistentemente procurada nos seus possíveis habitats.

Mesmo as outras borboletas ameaçadas que fazem parte do projecto da Madeira foram vistas às dezenas: a cleópatra-da-madeira (Gonepteryx maderensis), “que está em perigo crítico”, foi avistada 117 vezes, e a ariana-da-madeira (Pararge xiphia) foi avistada mais de 2000 vezes nas contagens de borboletas na ilha. Mas nas contagens da grande-branca-da-madeira ficou apenas um zero.

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Borboleta endémica da Madeira Pararge xiphia em cima de uma flor endémica, a Musschia wollastoni, sendo o género Musschia endémico da Madeira Cortesia de Sérgio Teixeira

Espécies comuns a desaparecer

Não são só as espécies ameaçadas que despertam interesse neste tipo de projectos: saber o estado de conservação das espécies mais comuns também é muito importante, dizem os coordenadores. “É uma pena perder espécies raras, mas o verdadeiro problema é quando até aquelas espécies que são comuns começam a decair”, observa Eva Monteiro. “E isso já se começa a verificar.”

A causa principal para o declínio de borboletas é sobretudo a destruição de habitats, mas há outros factores em jogo. “As causas do declínio dos insectos são as mesmas no resto da Europa, que também existem em Portugal: as alterações climáticas, a destruição dos habitats, o uso de pesticidas, a agricultura intensiva”, explica Eva Monteiro. E certo é que “as alterações climáticas agravam tudo”, continua a vice-presidente da associação Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal​. “Se os habitats já estão destruídos e a seguir ainda vem um aumento da temperatura em relação à média, esses habitats podem já não ter nenhuma possibilidade de recuperação.”

Em Portugal continental, o projecto começou por ter a duração de dois anos e o objectivo era “dar o pontapé de saída” em países europeus que ainda não tivessem programas de monitorização de borboletas. Noutros países já existem programas destes há décadas, mas em Portugal é uma proeza recente. “Três anos para um projecto deste tipo ainda é relativamente pouco tempo”, comenta Eva Monteiro. “Há países que têm mais de 30 anos de contagens de borboletas, sempre no mesmo sítio, e com esses dados é possível perceber que as borboletas estão a decrescer.”

O programa começou tímido, mas rapidamente foi crescendo e agora está “em expansão”: no primeiro ano, eram 16 voluntários que conseguiram avistar 1200 borboletas; em 2021, foram já 79 voluntários que avistaram mais de 16 mil borboletas (primeiro só se identificaram 45 espécies destes insectos, agora é quase uma centena). Também os transectos – os itinerários percorridos por quem anda à “caça” de borboletas – aumentaram de 12 no primeiro ano para 61 neste último ano. São bons resultados para os primeiros anos de projecto, até porque “a cultura de voluntariado científico em Portugal não era muito grande”.

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A borboleta Gonepteryx maderensis, bem camuflada Chris van Swaay/Cortesia de Sérgio Teixeira

Além do Tagis, que coordena este programa, existe uma parceria com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) para monitorizar borboletas em 18 áreas protegidas, como o Parque Natural do Alvão, em Vila Real, onde existe “grande diversidade de borboletas”, ou no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Em muitos destes casos, as contagens são asseguradas por técnicos do ICNF, vigilantes de natureza e voluntários de associações – ou ainda por trabalhadores de centros de interpretação e monitorização ambiental.

“Já encontrámos espécies interessantes, de que não há muitos registos em Portugal e que apareceram nestes transectos”, explica a coordenadora. “Focamo-nos muito na conservação da natureza e no conhecimento da natureza nas áreas protegidas, mas a biodiversidade que existe em áreas urbanas também é muito importante”, diz. Daí que se possam fazer contagens em qualquer lugar, mesmo em cidades, jardins urbanos, ruas, trilhos ou montes. Qualquer pessoa pode participar.

Ainda que as contagens para o censos sejam mais demoradas, “exigentes”, e impliquem disponibilidade para percorrer o transecto com regularidade durante o período de voo das borboletas (de Março a Setembro), há agora uma novidade: as contagens podem também ser feitas em apenas 15 minutos – em qualquer lugar e sem ser num transecto fixo. Basta ter a aplicação Butterfly Count e fazer o registo das borboletas avistadas num período de 15 minutos. O tempo começa a contar e o utilizador aponta as borboletas que viu, identificando a espécie; pode também fazer upload de fotografias para ajudar a confirmar que a identificação foi feita de forma correcta. Depois, é só submeter (mesmo que não tenham sido avistadas quaisquer borboletas).

Dez mil borboletas na Madeira

“Mesmo que não haja nenhuma borboleta são dados válidos e muito importantes também. Não haver borboletas num local também é em si indicador”, explica o coordenador regional do esquema de monitorização de borboletas da Madeira.

Ao todo, contaram-se mais de dez mil borboletas de 14 espécies desde o início do projecto, com dez voluntários em toda a ilha. Os dados serão entregues ao ICNF e ao Governo regional para que se definam projectos de protecção destas espécies.

“Amostrámos mais do que estava previsto, fizemos o dobro dos quilómetros que estavam previstos”, avalia Sérgio Teixeira, que é também professor auxiliar na Universidade da Madeira. E não querem parar por aí: “O nosso objectivo é ser o melhor esquema de monitorização de toda a Europa”, diz, a sorrir.

O projecto na Madeira deverá terminar em Agosto de 2022, mas ainda está “em discussão”. É financiado pelo Life4Best, um projecto de conservação da biodiversidade nas regiões ultramarinas da União Europeia, onde se integra a Macaronésia. O censos da Madeira está a ser gerido pela empresa de Sérgio Teixeira, Madeira Fauna e Flora, que faz as acções no terreno. A empresa criou em 2012 um sistema de contagem de borboletas para ir recolhendo alguns dados, que foram úteis em alguns relatórios sobre espécies ameaçadas na União Europeia, e servia também para integrar os turistas “num programa em que vão ver borboletas e recolhem dados ao mesmo tempo”.

Sátiro da Madeira (Hipparchia maderensis) Cortesia de Sérgio Teixeira
Almirante Vermelho da Macaronésia (Vanessa vulcania), endémica da Madeira e Canárias
Subespécie endémica: Acobreada da Madeira (Lycaena phlaeas phlaeoides)
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Sátiro da Madeira (Hipparchia maderensis) Cortesia de Sérgio Teixeira

Com tantos turistas na Madeira, Sérgio Teixeira quer precisamente tentar chamar quem está de férias para contar borboletas. “O objectivo é fazer contagens de 15 minutos pelo menos durante as férias, onde quer que estejam”, explica. Quando voltarem às suas casas, poderão continuar a fazer contagens de borboletas. “As contagens vão de um país ao outro e o que conta realmente são os habitats, se estão em bom estado de conservação ou não”. Ainda que haja seis espécies e subespécies endémicas de borboletas diurnas na Madeira, as restantes são iguais às que existem no continente.

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Contagem de borboletas na Madeira Cortesia de Sérgio Teixeira

A contagem de borboletas na Madeira permitiu até avistar uma borboleta que nunca tinha sido encontrada na ilha. “É uma espécie que existe no Continente e no Norte de África, que é a borboleta cauda-de-andorinha (Papilio machaon)”, explica Sérgio Teixeira. “Pode ter a ver com as alterações climáticas. O mundo é muito dinâmico, nós é que temos a ideia de que as coisas são muito estáticas. As alterações climáticas estão a agravar e a acelerar o processo”, repara.