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Onde a água pode ser pretexto para o conflito
As guerras têm causas múltiplas e complicadas, mas os recursos naturais, sobretudo se são escassos, podem tornar-se pretexto para conflitos. As alterações climáticas potenciam esse efeito
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Peter Gleick, especialista em água e conflitos do Instituto do Pacífico (Califórnia), definiu três formas de relação da água com conflitos
Como causa
Quando há uma disputa sobre o controlo da água ou o seu sistema de abastecimento; ou quando o acesso físico ou económico à água, ou a sua escassez, desencadeiam violência
Como arma
Quando a água enquanto recurso natural, ou os sistemas de distribuição de água, são usados como instrumentos de violência
Como vítima
A água enquanto recurso ou os sistemas de abastecimento à população podem ser alvos de violência
EUA
O rio Colorado, que nasce nos EUA e desagua no México, abastece 40 milhões de pessoas. O seu fluxo, que é regulado por um complexo conjunto de barragens e represas, diminuiu 20% desde 2000. Um tratado assinado em 1944 estabelece que os dois países partilhem entre si determinadas quantidades de água do rio Colorado em ciclos de cinco anos. Mas esse acordo não previu o rápido crescimento da região nem as alterações climáticas, pelo que hoje em dia não existe água suficiente para garantir essa partilha. O México e os EUA acordaram começar a rever o tratado em 2023.
Na fronteira
Desde 1992, houve três ocasiões em que o México não enviou toda a quantidade de água do Colorado que deve encaminhar para os EUA em ciclos de cinco anos (2157km cúbicos).
Em 2020, o México libertou água represada nas suas barragens para pagar uma dívida de água para com os EUA, apesar dos protestos por parte de agricultores mexicanos.
Brasil
Apesar de ser o país com as maiores reservas de água doce do planeta, 70% dessa água encontra-se na Amazónia,
onde vivem menos de 7% dos brasileiros.
Hoje em dia, o Brasil está a viver a pior seca desde que há registo. A desflorestação da Amazónia perturba o ciclo das chuvas e contribui para a crise hídrica.
Iraque/ Turquia/ Síria/ Irão
A bacia dos rios Eufrates e Tigre está a sofrer os efeitos da desertificação e das alterações climáticas. A Turquia, onde estes rios nascem, anunciou em 2019 que ia começar a encher a barragem de Ilisu, junto à nascente do Tigre — a mais recente de 22 barragens e centrais hidroeléctricas.
Estes projectos afectam a quantidade e qualidade da água que chega à Síria, ao Iraque e ao Irão. Em 2018 e 2019, muitas pessoas ficaram doentes em Basra, no Sul do Iraque, devido às águas poluídas do Tigre, o que desencadeou grandes protestos contra o Governo.
A água tem sido usada como instrumento político ou arma
Em 1987, a Turquia assinou um acordo com a Síria, comprometendo-se a libertar 500m3/s de água em troca do fim do apoio de Damasco ao PKK, organização que luta pela independência do povo curdo e que Ancara apelida de terrorista.
O grupo Estado Islâmico, que controlou território no Iraque e na Síria entre 2014 e 2017, destruiu territórios rurais, poços e redes de irrigação.
Irão
É grave a crise causada pela seca, pelo crescimento populacional e pela má gestão dos recursos naturais. São frequentes os protestos populares relacionados com a água, aos quais as autoridades respondem com força letal, nomeadamente nas seguintes regiões:
•na zona do lago Urmia, a oeste da cidade de Tabris, afectado pela construção de uma barragem;
•na província do Cuzistão, no Sudoeste, onde a seca é grave
•em Isfahan, a terceira maior cidade iraniana, onde decorreram protestos pela falta de água no rio Zayanderoud
Há uma disputa entre o Irão e o Afeganistão sobre o rio Helmand/Harirud por causa da construção da barragem Kamal Khan — no lado afegão. Teerão antecipa que ela cause danos ambientais, sobretudo no sul do país; Cabul responde que a barragem respeita o tratado sobre a água que os dois países assinaram em 1973.
Índia
Condições de seca por toda a Índia desencadeiam manifestações, por vezes violentas, e disputas entre estados; deixam cidades sem água e obrigam camponeses a abandonarem as suas terras.
Um tratado assinado com o Paquistão sobre a partilha do rio Indo, que corre ao longo da fronteira, tem evitado o agravamento de conflitos por causa da água. O foco de crise é a região de Caxemira, onde a Índia quer construir novas barragens.
O rio Brahmaputra, que abastece 130 milhões de pessoas na China, Índia e Bangladesh, tem sido fonte de disputas — e não existe qualquer tratado que regulamente a partilha das suas águas. A construção de barragens pelos países a montante (China e Índia) costuma ser vista como um risco pelos Estados a jusante (o Bangladesh e até a Índia).
Corno de África
Quénia
O Programa Alimentar Mundial lançou o alerta de que 13 milhões de pessoas podem vir a passar fome graças à seca que afecta a região do Corno de África.
No Norte e Leste do Quénia, a competição por recursos escassos fez aumentar os conflitos entre comunidades de pastores nómadas.
Corno de África
Somália
Mais de 80% do território deste país arrasado por anos e anos de guerra está a atravessar uma seca severa. Até Maio, 4,6 milhões de pessoas podem sofrer na pele a grave falta de água, de alimentos e de pastos para o gado, avisa a ONU.
Corno de África
Etiópia
O Programa Alimentar Mundial avançou, em Janeiro, que pelo menos 40% dos habitantes da região de Tigré, no Norte da Etiópia — que está em guerra com o Governo central —, passa fome. Nove milhões de pessoas precisam urgentemente de ajuda alimentar. No Sul do país, três anos seguidos de seca deixaram 6,8 milhões de pessoas em situação de necessidade extrema, alerta a UNICEF.
Etiópia-Egipto
Os dois países mantêm, há uma década, uma disputa por causa da megabarragem Renascimento, que a Etiópia está a construir no Nilo Azul — um equipamento que poderá produzir 6450 megawatts de energia e que será uma das maiores do mundo. Mais de 80% da água que alimenta o Nilo que chega ao Egipto provém daquele rio — daí a preocupação no Cairo.
Em 2021, a Etiópia anunciou que ia começar a encher a barragem. O Egipto e o Sudão, outro país por onde passa o Nilo, apelaram ao Conselho de Segurança da ONU para que interviesse na disputa.
Sahel
A escassez de água e de terra está a tornar mais frequente e intensa a violência entre agricultores e pastores nos países do Sahel. Estão ainda a proliferar na região grupos armados, alguns de inspiração jihadista.
Recentemente, houve golpes de Estado em vários países:
Burkina Faso, Chade, Guiné, Mali
No Norte dos Camarões, por exemplo, os conflitos que irromperam entre pastores, pescadores e agricultores, em Dezembro de 2021, provocaram a fuga de 100 mil pessoas para o vizinho Chade.
No Mali Central, a região do Delta Interior do Níger – a maior planície de cheia de África – tornou-se um ponto de violência intercomunitária e uma base operacional para grupos armados e milícias.
Iémen
Embora o conflito não se deva à falta de água, neste país em guerra desde 2014, a infra-estrutura de água tem sido regularmente alvo de bombardeamentos por parte da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos. Estes ataques fizeram aumentar significativamente o número de pessoas sem acesso a água potável ou saneamento e contribuíram para epidemias como a de cólera, que se iniciou em 2016.
FICHA TÉCNICA
Textos: Clara Barata, Infografia: Gabriela Gómez, Desenvolvimento web: Gabriela Gómez e Francisco Lopes Video: Uzunov Rostislav/Pexels, Coordenação: Célia Rodrigues, Teresa Firmino e Andreia Sanches