Nem o Árctico passou incólume à “maré de plástico” global

Estudo revela não só grau preocupante de detritos plásticos no oceano Árctico mas também interacções imprevistas entre esta poluição e as mudanças climáticas

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DR/Instituto Alfred Wegener
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O Árctico figura no imaginário colectivo como uma paisagem isolada, pura, pouco tocada pela mão humana. Esta representação, por si só idílica, está cada vez mais longe de corresponder à realidade: as chamadas “marés de plástico” já contaminaram todas as esferas da região polar, revela um estudo de revisão publicado nesta terça-feira na revista Nature Reviews Earth & Environment. O oceano Árctico alberga actualmente grandes quantidades de plástico que foram sendo arrastadas até ali de diferentes formas, quer por vias fluviais e aéreas, quer pelos próprios transportes marítimos.

“As regiões polares, incluindo o Árctico, ainda são vistas por muitos como o último reduto selvagem da Terra. Contudo, há vários anos está muito claro para aqueles que ouviram [os diversos avisos da ciência] que esse não é o caso. O aumento da temperatura no Árctico foi três vezes mais rápido que a média global, por exemplo. A redução do gelo marinho e o derretimento rápido das geleiras também têm sido destacados pelos cientistas há muitos anos”, afirmou ao PÚBLICO Melanie Bergmann, investigadora no Instituto Alfred Wegener do Centro Helmholtz para a Investigação Polar e Marítima, na Alemanha. A cientista é a autora principal do estudo agora divulgado.

Altas concentrações de microplástico podem ser encontradas na água, no fundo do mar, em praias remotas, rios e até mesmo no gelo e na neve. Os números são claros: hoje, entre 19 e 23 milhões de toneladas métricas de lixo plástico por ano acabam nas águas do mundo – ou seja, dois camiões por minuto. Como o plástico também é um material estável, pode acumular-se nos oceanos, onde aos poucos se decompõe em pedaços cada vez menores. E, assim, passa da escala macro à micro e, por fim, torna-se nanoplástico. Trata-se de um tamanho tão, tão pequenino que é capaz até de entrar na corrente sanguínea humana.

“Os detritos plásticos constituem um tipo de poluição mais tangível em comparação com o gás carbónico ou o metano, por isso podem ajudar a comunicar a realidade do que se passa no Ártico”, afirma a cientista do instituto alemão, recordando que o plástico é responsável por 4,5% da emissão global de gases de efeito estufa.

“Isto quer dizer que os dois [a poluição e a crise climática] estão interligados e, no estudo, apresentamos a primeira evidência de que ambos também interagem de outras maneiras. É o caso da diminuição do albedo do gelo, ou seja, a capacidade que a superfície gelada tem de reflectir a luz. E também das mudanças causadas pelos microplástico atmosférico: partículas de plástico na atmosfera fornecem núcleos de condensação para nuvens e chuva, o que significa que podem influenciar a longo prazo o clima. E ainda, por fim, das alterações no sequestro de carbono”, explicou Bergmann ao PÚBLICO por correio electrónico. Estudos preliminares sugerem, por exemplo, que o microplástico preso altera as características do gelo marinho e da neve: partículas escuras podem significar que o gelo absorve mais luz solar e, portanto, derrete mais rapidamente.

As projecções da produção global de plástico não antevêem um futuro muito auspicioso: calcula-se fabrico deste material deve dobrar até 2045. As consequências deste ritmo alucinante de formação de polímeros já se fazem sentir hoje. Praticamente todos os organismos marinhos estudados no mundo – de plâncton a cachalotes – já estão em contacto com detritos plásticos e microplásticos, seja em praias tropicais remotas ou em profundas fossas oceânicas. O nível de poluição plástica apresentado nesses locais isolados é muitas vezes semelhante ao de regiões densamente povoadas. O Árctico não é uma excepção.

“O Árctico tem sido muitas vezes considerado um sistema de alerta precoce. Este [alarme ambiental] agora grita alto para avisar que temos que agir e reduzir a produção de plástico, ao invés de aumentar os níveis de produção a cada ano, que estão em uma trajectória para dobrar novamente dentro de 23 anos. O estudo reitera a necessidade de negociar um tratado global ousado e juridicamente vinculativo que inclua metas claras de redução”, afirmou ao PÚBLICO a especialista, cuja equipa na Alemanha realizou a investigação em conjunto com colegas da Noruega, Canadá e Holanda.

A resolução para um tratado global de plástico, aprovada na Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente em Fevereiro, é um primeiro passo importante. Além disso, são necessárias mais regulamentações e controles no que diz respeito aos detritos plásticos do transporte internacional e da pesca.

Plásticos que viajam

A poluição tem uma capacidade formidável para viajar e apanhar “boleias”, contando com a ajuda das correntes oceânicas do Atlântico e do Mar do Norte, e do Pacífico Norte sobre o Estreito de Bering. Pequenas partículas de microplástico também são transportadas para o Árctico pelo vento. O sistema fluvial também contribui.

“Embora o oceano Árctico represente apenas um por cento do volume total dos oceanos do mundo, este recebe mais de 10 por cento da descarga global de água dos rios, que transportam plástico para o oceano da Sibéria, por exemplo. Quando a água do mar na costa da Sibéria congela no Outono, o microplástico suspenso fica preso no gelo. A Deriva Transpolar [a maior corrente do oceano Árctico] transporta os blocos gelados para o Estreito de Fram, entre a Groenlândia e Svalbard, onde derretem no Verão, liberando sua carga plástica”, refere o comunicado de imprensa do Centro Helmholtz para a Investigação Polar e Marítima, a maior organização científica da Alemanha.

Entre as fontes de poluição locais estão os resíduos urbanos e águas residuais das comunidades do Árctico e detritos plásticos de embarcações. Os navios pesqueiros, cujas redes e cordas são despejadas intencional ou acidentalmente nas águas, serão os responsáveis por uma parte significativa dos detritos na porção europeia do Árctico. Quase a totalidade da carga de polímeros que deu à costa em Svalbard tem origem no sector piscatório, segundo um estudo anterior do instituto alemão. “Entre os achados mais bizarros que já fizemos está um barril de plástico que, muito provavelmente, tem a minha idade. E, claro, brinquedos de crianças”, contou Bergmann ao PÚBLICO.

A investigadora lamenta haver “muito poucos” estudos sobre os efeitos do plástico em organismos marinhos no Árctico. Mas garante que as consequências são semelhantes às de regiões mais bem estudadas: ursos polares, focas, renas e aves marinhas ficam presos em estruturas de plástico e acabam por morrer. O microplástico ingerido involuntariamente por animais do Árctico provavelmente também leva à redução do crescimento e da reprodução, ao stresse fisiológico e a inflamações nos tecidos.

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