É seguro dizer que haverá poucas modelos das últimas décadas que não tenham sido fotografadas por Patrick Demarchelier. O conceituado fotógrafo francês morreu, esta quinta-feira, aos 78 anos. O anúncio foi feito nas redes sociais e as causas da morte ainda são desconhecidas. “Sobrevivem-lhe a mulher Mia, os seus três filhos Gustaf, Arthur, Victor e três netos”, refere ainda a curta mensagem. Há só uma mancha no seu currículo: suspeitas de abusos sexuais.
O profissional, com mais de meio século de carreira, deixa a sua marca no mundo da moda pela forma como captou os rostos e os corpos das supermodelos, mas também de artistas e outras celebridades, incluindo a princesa Diana, de quem foi fotógrafo pessoal. Demarchelier foi, aliás, o primeiro não britânico a ter tal posição na família real britânico. O francês conseguiu cristalizar a personalidade informal da “princesa do povo” em fotografia, e, num dos seus retratos mais famosos, a mãe de William e Harry surge sentada no chão num vestido branco sem alças com uma tiara de diamantes a abraçar os joelhos, a sorrir de forma genuína.
Desde a década de 1970 até há bem pouco tempo, Patrick Demarchelier fotografou para as principais revistas do meio, da Vogue à Vanity Fair, passando pela Harper's Bazaar, assim como fez campanhas para marcas de luxo como a Chanel, Dior, Versace, Louis Vuitton, entre tantas outras, deixando, certamente, um legado para a história da fotografia de moda.
O percurso de Patrick Demarchelier — nascido em 1943 em Le Havre, na Normandia, França — começou bem cedo, como autodidacta. “Não pensava em ter uma carreira. Não o planeava. Aconteceu-me”, disse, em 2015, numa entrevista à Vogue norte-americana. A primeira câmara fotográfica recebeu, como presente do padrasto, e, desde cedo, fotografava casamentos e fazia fotografia tipo passe. Aos 20 anos quando se mudou para Paris encontrou trabalho com o fotógrafo suíço Hans Feurer.
Ainda a viver em França, já colaborava com a Vogue norte-americana. Acabaria por mudar-se para os EUA, em 1975. Foi atrás de uma namorada. A primeira grande capa de revista chegaria dois anos depois, ainda que a mais memorável dessas décadas tenha sido feita com Madonna, em Maio de 1989, também na Vogue. Foi a Grace Coddington, a conhecida directora da publicação, que Demarchelier atribuiu grande parte do seu sucesso.
Na década de 90, não há supermodelo que tenha escapado à sua lente, com destaque para as badaladas Big Six — Christy Turlington, Cindy Crawford, Claudia Schiffer, Kate Moss, Linda Evangelista e Naomi Campbell. Demarchelier tinha o dom de as captar numa faceta desconhecida do grande público e a edição da Vogue do Verão de 1992 é disso exemplo, com uma fotografia de Campbell, Beverley Peele e Tyra Banks num barco às gargalhadas. A ligação do fotógrafo à publicação é tal que até é mencionado no filme O Diabo Veste Prada, de 2006.
No ano seguinte, em sinal de gratidão pelo legado na moda, o ministério francês da Cultura, atribuiu-lhe a Ordem das Artes e das Letras, uma condecoração dada às personalidades que se distinguem nestas áreas. Também em 2007, recebe o prémio do Council of Fashion Designers of America (CFDA). Paris chegou mesmo a receber uma exposição do seu trabalho, no Petit Palais, em 2009. “Nós, fotógrafos, temos de fazer as roupas parecer fantásticas, é para isso que nos pagam. E eu tenho um olhar positivo”, lembrou, numa entrevista em 2012.
Um capítulo menos feliz
O legado rico de Demarchelier na moda fica manchado por suspeitas de abusos sexuais. Em 2018, na onda de denúncias do movimento #MeToo, o seu nome surge entre um sem número de fotógrafos que mais de 50 modelos denunciaram, por terem sido vítimas de abusos, numa investigação da equipa Spotlight, do jornal Boston Globe — o mesmo que denunciou os abusos sexuais no seio da Igreja Católica, em 2001.
O fotógrafo negou veementemente todas as alegações, vindas de sete mulheres, classificando-as como “ridículas”. Ainda assim, a editora Condé Nast — que publica as revistas Vogue, New Yorker e Vanity Fair, entre outras —, com quem trabalhou durante várias décadas, anunciou que deixaria de recorrer aos seus serviços. Uma das mulheres que alegava ter sido assediada por Demarchelier foi uma das suas assistentes, que escreveu uma carta a Anna Wintour, editora-chefe da Vogue, onde contava que, quando tinha 19 anos, o fotógrafo a teria tentado seduzir e, face à recusa, a humilhara frente a toda a equipa durante uma sessão fotográfica.
“Dói-me tanto pensar em quantas raparigas, muitas da idade da minha própria filha que tiveram de se defender ou ceder aos seus avanços porque não falei na altura”, escreve a mulher, cuja identidade permanece anónima, citada pela revista InStyle. “Lembro-me de muitas sessões com raparigas adolescentes onde a equipa de assistentes de Patrick (incluindo eu) era dispensada ao fim do dia, para depois encontrar fotos da rapariga nua na câmara escura no dia seguinte”, alega.
O adeus da indústria da moda
As alegações nunca viriam a concretizar-se em acusações em tribunal e Patrick Demarchelier continuou a trabalhar. Entre as modelos que fotografou nos últimos anos, está a portuguesa Sara Sampaio, que lamentou a morte do profissional nos stories de Instagram: “Foi uma honra fotografar contigo. A mandar todo o amor a Victor Demarchelier e à família”.
Victor é um dos três filhos de Patrick, também ele fotógrafo de moda. Em reacção à morte do pai, partilhou uma fotografia do pai com uma das três netas. “Um verdadeiro lutador… Aqui com a Sophie há apenas alguns dias”, escreveu. Entre as homenagens prestadas nas redes sociais destaca-se também a designer norte-americana Vera Wang, que promete “valorizar para sempre” o talento de Demarchelier. “Que descanse em paz para todo o sempre”, escreve.
A modelo norte-americana Amber Valletta foi das primeiras a reagir nos comentários da fotografia partilhada pela família. “O Patrick foi um dos primeiros fotógrafos a trabalhar comigo. Faz parte da história da moda e da lenda da fotografia”, elogia. Também Doutzen Kroes, ex-anjo da Victoria’s Secret, lamenta a partida do francês: “Levamos connosco, para o resto das nossas vidas, memórias incríveis que criamos com Patrick.”
Das Big Six, sobressai o longo texto publicado por Christy Turlington, onde confessa que, ao pensar em Patrick Dermarchelier, lhe vêm à cabeça dezenas de sítios para onde viajar juntos, de Nova Iorque a Veneza. Quando conheceu o francês, nos anos 1980, diz ter visto um homem sério, de quem “não conseguia decifrar uma palavra”. “Isso mudou ao longo dos anos. Acabei por aprender a interpretar tudo. As memórias e histórias são realmente infinitas. Outro desapareceu, que fazia parte de uma era da moda que já não existe”, termina. Já a alemã Claudia Schiffer lembra-o pela “refinada elegância que trazia para o seu trabalho”.