Aos 100 anos, a Tavares quer provar que a ourivesaria tradicional está pronta para o futuro
Ana e Carlos Tavares conduzem os destinos da ourivesaria da Póvoa de Varzim desde 2010. A celebrar um século de história, dizem que o futuro faz-se também de um regresso ao passado, modernizando os clássicos da ourivesaria portuguesa.
Carlos Tavares caminha lado a lado com a irmã, Ana, pela principal artéria comercial da Póvoa de Varzim e conta com orgulho: “Esta é a Rua da Junqueira. Chama-se assim porque antigamente passava aqui um rio que tinha juncos. Foi das primeiras ruas pedonais de Portugal.”. Os irmãos detêm-se em frente à Tavares, a ourivesaria de que são donos ─ uma casa a celebrar cem anos. Foi aqui que cresceram, a ajudar o pai. Parece ontem que se tinham de pôr em bicos de pés para ver para lá do balcão, hoje querem provar que a ourivesaria tradicional portuguesa continua cheia de vitalidade e estão prontos para mais um século de história.
Como em todas as histórias centenárias talvez faça sentido começar pelo princípio, quando, em 1922, Virgílio Aristides Tavares assinou o contrato de fundação da sociedade Andrade & Tavares. No ano de 1937, é comprado o edifício número 54 na então Rua 5 de Outubro, onde já estava a instalada a ourivesaria há 15 anos. É nessa altura que o avô de Ana e Carlos, Virgílio, assume os comandos da empresa, tornando-se sócio totalitário. “Este local era, além de oficina e loja, também habitação da família. O meu avô comprou a casa em hasta pública”, revela, ao PÚBLICO, Carlos Tavares.
Natural de Vilarinho da Castanheiro, no concelho de Carrazeda de Ansiães, Bragança, Virgílio Aristides combateu na I Guerra Mundial e foi no Porto que aprendeu o ofício de ourives, antes de assentar arraiais na Póvoa de Varzim. “O meu avô fazia as feiras de Vila Real e Chaves. Ia de carreira, levava duas malas carregadas de jóias e dois relógios de paredes, um pendurado à frente e outro atrás”, recorda o empresário. Ao voltar das feiras, reaviva, já não trazia nenhum.
Quando, em 1954, o fundador da ourivesaria morre são os três filhos a ficar com o negócio da família. Entre eles estava Manuel Miguel, o pai de Ana e Carlos, quem lhes contou as histórias do avô que não chegaram a conhecer. À entrada do espaço, uma fotografia de um casal com quatro crianças chama a atenção. “São os meus avós com os quatro filhos”, apronta-se a explicar Carlos Tavares. O pai dos dois sócios-gerentes poderá ser conhecido melhor ao fundo da loja, onde está um quadro com alguns dos objectos do ourives: um relógio, os óculos, uma lupa, uma escala e uma pinça. “É aqui que se vem buscar conforto quando os problemas surgem”, confessa.
Manuel Miguel era um grande apaixonado pelo ouro ─ gosto que passou aos dois filhos. Ana recorda como a sua brincadeira favorita era no armazém entre as caixas da ourivesaria, “daquelas em plástico com um algodão dentro”. Carlos acompanhava a colecção do pai, que engloba mais de cem peças em ouro, de brincos, a pregadeiras, até pequenos objectos. Os dois irmãos mostram com orgulho a colecção ao PÚBLICO, recordando histórias do passado. “Estes brincos eram usados pelas viúvas”, explicam, referindo-se a um par coberto em ouro com um pano preto.
“O ouro sempre foi símbolo de poder e estatuto social”, lembra o empresário. Ter peças nesse material, apontam os irmãos, era também uma forma de poupança, uma garantia perante a incerteza. E Carlos recorda um ditado popular: “Terra quanta vejas e ouro quanto possas”. O sócio da Tavares destaca que, quando há uma crise mundial, este metal precioso sobe sempre de preço. Não é por acaso que o Ocidente quer impedir a Rússia de usar as suas reservas de ouro ─ é o quinto país do mundo mais rico neste metal. “Não há nada que destrua o ouro, excepto o mercúrio”, sublinha.
Tradicional, mas contemporânea
Ana e Carlos Tavares começaram a trabalhar cedo no negócio da família. Ana ficou-se pela ourivesaria, no atendimento ao cliente e na gestão do quotidiano; já Carlos fez várias formações pelo mundo em gemologia, que estuda as pedras precisas. Diamantes são, aliás, a sua especialidade. Encarregues dos destinos da Tavares desde 2010, dizem trabalhar “rumo ao centenário” desde então ─ um marco que concretizam agora com uma nova imagem e uma nova fachada para a loja e oficina.
Com a pandemia, tal como muitos pequenos negócios, viram-se obrigados “a repensar”. Em 2019, de acordo com o Informa DB, as 1699 empresas de ourivesaria e relojoaria nacionais tinham um volume de negócios de mais de mil milhões de euros. Em 2020, a pandemia representou um golpe para um volume de negócios de 663.409.775 euros. Na Tavares, a quebra foi de 26%, que só viria a recuperar em 2021, num ano “muito positivo”, onde subiram, comparativamente a 2019, “16 a 17%”, informa Carlos Tavares.
E que “repensar” foi esse? Deixaram de “promover e vender marcas”, já que “dentro de portas” não falta material, pensado por eles e mandado fazer nos fornecedores. “Há a ideia de associar o tradicional ao parolo”, lamenta o empresário, sem rodeios. Na nova fase da ourivesaria foram ao arquivo ver o que se fazia em ouro e começaram a redesenhar esses modelos. “Há coisas que são eternas. Basta modernizar as linhas e fica com um toque contemporâneo”, defende.
Há uma aposta que se mantém e que querem voltar a reforçar depois da pandemia: o mercado dos casamentos. Cerca de 20% da facturação da Tavares vem das alianças para noivos, muitas feitas por medida na oficina da ourivesaria. Em 100 anos de história, relatam acompanhar os marcos de inúmeras de famílias, em Portugal e no estrangeiro, para onde vendem sobretudo a emigrantes. “As jóias estão sempre associadas a um momento especial da vida”, defende Ana Tavares.
É na pequena oficina, onde trabalham quatro ourives, que se tornam realidade os sonhos dos clientes, desenhados pela designer da casa ─ a personalização representa a grande aposta do momento. Aqui ninguém trabalha há menos de 20 anos e já se fez um bocadinho de tudo: alianças e anéis de noivado, baixelas, restauros de peças antigas e mesmo o báculo do arcebispo de Bragança, D. José Cordeiro. Numa prateleira, em destaque, está a imagem de santo Elói, padroeiro dos ourives e joalheiros. O ofício, lamentam, está em vias de extinção. “Não há curiosidade dos jovens em aprender a área. Tenho dois lugares de ourives disponíveis”, apela Carlos Tavares.
Clientes do digital
A preocupação quanto ao futuro do ofício de ourives também se estende à Tavares, apesar de Ana e Carlos dizerem, com humor, que “ainda são novos”. Os filhos de ambos estudaram outras áreas e, para já, não se envolvem muito no negócio. Todavia, os irmãos prometem estar já a preparar o terreno para os anos vindouros. Em Outubro passado, inauguraram a loja online, onde colocam à venda as linhas mais simples e adaptadas ao público do digital.
“A empresa não sobrevive apenas com o mercado local, precisa de crescer noutros sítios”, argumenta Carlos Tavares. Abrir uma loja noutra cidade, como Lisboa ou Porto, está “fora de questão”, porque implicaria uma experiência diferente, onde não poderia ser assegurada “a mesma qualidade e experiência” do que na Póvoa de Varzim. Nos últimos meses têm chegado clientes à ourivesaria vindos do digital, apesar de ainda não terem registado encomendas através do site. “O objectivo não é ter muitas referências na loja online. Não queremos ser um negócio de massas”, declara.
Apesar dessa declaração de interesses, os empresários lamentam que Portugal não seja um “país de grandes marcas de joalharia”, embora nomes como a Cartier ou a Chopard produzam por cá. “Se houvesse uma marca portuguesa de renome, ganhava-se na produção e na comercialização”, observa Carlos Tavares. Apesar de tudo, os irmãos estão optimistas no que toca ao futuro da ourivesaria, que argumentam ter sido “dos primeiros sectores a preocupar-se com a sustentabilidade”.
O pai dos dois irmãos chegou a comprar o soalho de uma ourivesaria para recuperar algum ouro, recordam. Além disso, aponta Ana Tavares, ninguém descarta uma jóia, por ter sempre uma história associada. Tudo se transforma neste sector. “A vantagem da ourivesaria é que nada se perde”, conclui Carlos Tavares.