Celebrar a igualdade em tempos de guerra

Igualdade salarial, impacto da pandemia nas mulheres, equilíbrio entre vida profissional e pessoal, paridade nas empresas. A agenda do Parlamento Europeu para a semana do 8 de Março estava preenchida, mas outro assunto acabou por dominar todas as conversas: a guerra na Ucrânia.

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Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, com a escritora ucraniana Oksana Zabuzhko Fred MARVAUX / PE
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Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu Alexis HAULOT / PE
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Seminário para jornalistas no Parlamento Europeu em Estrasburgo Daina LE LARDIC / PE

Eram já cerca de 22h30 e o eurodeputado Pedro Silva Pereira, um dos vice-presidentes do Parlamento Europeu a quem coube conduzir os trabalhos da plenária no final do dia 8 de Março, pedia à eurodeputada que acabara de intervir para que ficasse até ao fim da sessão. Debatia-se o III Plano de Acção da União Europeia (UE) em matéria de Igualdade de Género, um instrumento para promover os valores da igualdade na acção externa. Apesar de ser um plano pertinente face a situações críticas que ocorreram nos últimos meses fora do território da UE, como no Afeganistão e agora na Ucrânia, nem por isso o hemiciclo se encheu para falar sobre a temática. “Treze pessoas”, contou de forma irónica a deputada, que acabava de fazer uma intervenção a criticar o relatório em debate.

O Dia Internacional das Mulheres não foi o dia de celebração que tinha sido planeado pelo Parlamento Europeu, como se repetiu no início de várias intervenções ao longo do dia. Um dia de celebração sob a “sombra de uma guerra”, lamentou Roberta Metsola, a terceira mulher a presidir ao hemiciclo dos 27. Ao longo daquela que por norma é uma semana dedicada à igualdade, a guerra na Ucrânia assumiu o primeiro plano.

O habitual seminário para jornalistas para marcar o 8 de Março, para o qual o PÚBLICO foi convidado, acabou por ser reorganizado nos dias anteriores para receber três deputadas ucranianas. “Tal como em outras crises, as mulheres e meninas foram as primeiras vítimas”, afirmou Roberta Metsola, na sua intervenção no seminário. “A maioria das pessoas refugiadas são mulheres”, notou, recordando contudo as “mulheres barricadas em casa”, onde ficaram para cuidar dos seus entes incapazes de fugir. A eurodeputada lembrou ainda que 20% do exército ucraniano será composto por mulheres, muitas delas sem sequer estarem oficialmente registadas, o que as coloca em perigo adicional. Em todos os casos, saudou a “força feminina” das ucranianas para lidar com “os horrores da guerra”, prometendo apoio do Parlamento Europeu para forçar medidas de apoio e sanções à Rússia. “Temos que ser 0% dependentes do gás russo”, asseverou a presidente do PE. “Estamos, de certa forma, a financiar esta guerra.”

A deputada Ivanna Klympush-Tsintsadze, do partido da oposição ucraniana Solidariedade Europeia, falou das dezenas de crianças que já foram mortas no conflito para deixar um apelo: “Quem respeita os direitos humanos deveria estar a pressionar o seu governo.” Acrescentou ainda que as acções de outros países europeus “não vão salvar apenas vidas ucranianas, vão salvar vidas em todo o mundo”. “Estamos a lutar uma luta patriótica contra a barbárie”, descreveu. “Os ucranianos e ucranianas vão resistir até à última bala. Mas não gostaria que chegasse a esse ponto.” Já a deputada Maria Mezentseva, do partido do governo Servos do Povo, falou na urgência de “assegurar corredores de vida, não de morte”, exigindo protecção para os corredores de ajuda humanitária. Recordando os já milhões de mulheres e crianças que têm chegado às fronteiras com os países vizinhos da Ucrânia, pediu especial atenção à “questão muito alarmante da violação de direitos das mulheres” que se coloca nesta situação de enorme vulnerabilidade.

Inna Sovsun, deputada pelo partido Holos (Voz), contou várias histórias que mostram a situação dramática no país: uma mulher que teve que pôr o filho de 11 anos sozinho num comboio, não o podendo acompanhar porque iria ficar a cuidar da mãe idosa. Um ataque a uma zona residencial - algo proibido pela Lei Internacional Humanitária (que tenta estabelecer limites à crueldade da guerra) - em que uma criança de três anos ficou sem uma perna. Na cidade de Kharkiv, viu imagens de uma bomba a explodir num sítio a cinco minutos da escola onde tinha estudado. Estes relatos de bombardeamentos indiscriminados - “não sabemos onde a próxima bomba vai cair”, diz - mostram, na sua opinião, “o nível de desumanidade” do ataque russo. Apelou ainda a sanções contra negócios russos, que “vão financiar as bombas que caem sobre as nossas cabeças.” “Só há uma forma de acabar com isto: parar os bombardeamentos, manter o nosso céu seguro”, assevera.

“Sou uma fã dos valores da UE, mas sinto-me traída”, lamentou Inna Sovsun. “Só temos ouvido desculpas sobre o que não pode ser feito, enquanto as nossas crianças morrem nas explosões.”

Mulheres no topo da agenda

O seminário de dia 7 de Março, contudo, não deixou cair as agendas das mulheres na União Europeia, onde ainda persistem desigualdades que as instituições tentam combater. Roberta Metsola recordou que as mulheres estão a ser “desproporcionalmente impactadas pela pandemia”, citando dados do mais recente Eurobarómetro que fala sobre saúde mental, rendimentos, equilíbrio entre a vida profissional e pessoal e o tempo dedicado aos trabalhos domésticos. “Precisamos de um real mudança de paradigma, uma mudança cultural do papel das mulheres nas nossas sociedades”, afirmou a presidente do Parlamento Europeu.

O tema escolhido para o seminário era a proposta de Directiva “Equal Pay”, dedicada ao reforço da transparência salarial em todos os Estados-membros. O parecer do PE será votado pelo hemiciclo até ao final de Março, entrando em seguida para o período de trílogo, onde ocorrem as negociações entre Parlamento, Comissão e Conselho da UE. A eurodeputada dinamarquesa Kira Marie Peter-Hansen, membro da comissão do Trabalho e com apenas 24 anos, explicou que o texto da directiva “tem que ser transposto para a lei” de cada Estado-membro depois de aprovado, como passo essencial para combater as desigualdades salariais nos diversos países, tendo em conta que os vazios legais são muitas vezes subterfúgios para que a lei não seja cumprida. A neerlandesa Samira Rafaela, da comissão dos direitos das mulheres e igualdade entre géneros, reconheceu que “o trílogo vai ser muito difícil”, mas ambas as deputadas relatoras estão confiantes.

Houve ainda tempo para ouvir Linda Senden, especialista da Universidade de Utrecht em legislação europeia, que apontou dois principais obstáculos que explicam que as leis existentes em alguns países (como Portugal) sejam tão ineficazes: um sistema de protecção jurídica deficiente e a falta de apoio institucional. Já a advogada francesa Clara Gandin, que tem acompanhado vários casos ligados à desigualdade salarial, sublinhou que “transparência significa acabar com a opacidade, que é o que permite que a discriminação seja escondida e disseminada.” “Temos leis que são extensas, precisas, mas não têm sanções financeiras. E isto impede-nos de ir mais longe”, reforçou ainda, aplaudindo o parecer do PE sobre esta proposta de directiva.

Direitos dos e das eurodeputadas

No dia 8 de Março, na celebração do Dia Internacional das Mulheres em Plenária, as atenções estiveram viradas para a escritora ucraniana Oksana Zabuzhko, que num discurso emocionado lembrou que “as mulheres são o alvo mais vulnerável em qualquer guerra porque são elas que ficam para trás para tomar conta das crianças e dos mais velhos”. Elogiou ainda as mulheres que, na Ucrânia, continuam a lutar: “Não posso deixar de admirar as minhas companheiras, lutando ao lado dos nossos homens, gerindo a distribuição de mantimentos nas nossas cidades sitiadas e dando à luz em abrigos para se protegerem das bombas, supervisionadas por médicos online. Somos fortes e estamos gratas pelo vosso apoio, o problema é que as bombas de Putin não serão travadas pela força do nosso espírito.”

Os discursos de representantes dos partidos europeus presentes no hemiciclo foram marcados também por um tom sóbrio, quebrado com mais entusiasmo pela porta-voz do grupo dos Socialistas e Democratas (S&D): “Viva a luta feminista! Viva o 8 de Março!”, lançou Iratxe García-Perez, encerrando o seu discurso da manhã.

Passou-se o dia sem que se ouvisse falar sobre os dossiês dedicados às desigualdades vividas pelas mulheres. Até ao final da noite. Já depois da hora de jantar (a plenária em si não fez pausa), Pedro Silva Pereira, um dos vice-presidentes do Parlamento Europeu, tomou a condução da ordem de trabalhos. O tempo era escasso, era preciso encerrar tudo até às 23h. Mas o eurodeputado socialista haveria de repetir algumas vezes: “já estamos com pouco tempo, mas não falem tão rápido, senão os intérpretes não conseguem traduzir.”

No debate sobre a integração da perspectiva de género (gender mainstreaming) no Parlamento Europeu, a ironia também não escapou a quem reparou na sala quase vazia para ouvir propostas que interessam directamente aos e às deputadas, como a recomendação da introdução de licenças de parentalidade, que são actualmente inexistentes (o que, na prática obriga os eurodeputados - em particular as mulheres - a abdicarem do cargo e serem substituídas, como aconteceu com a comunista Inês Zuber em 2016).

“Os direitos das mulheres são para cumprir, para prosseguir e não podem ser apenas propaganda por uma igualdade a alcançar”, alertou Sandra Pereira. Focando o seu discurso nos direitos das mulheres trabalhadoras, a eurodeputada comunista aproveitou ainda para defender as mulheres desproporcionalmente carregadas pelas tarefas de cuidados: “É preciso avançar na promoção de direitos das mães trabalhadoras, reduzindo o horário de trabalho, cumprindo os direitos de maternidade e paternidade e o direito de mães e pais acompanharem os filhos, assegurando a gratuitidade das creches e criando uma rede pública de qualidade e acessível, equipamentos e serviços de apoio aos idosos e às pessoas com deficiência.”

A socialista Maria Manuel Leitão Marques salientou que várias “desigualdades políticas, sociais e económicas” foram “acentuadas nestes dois últimos anos ou, pelo menos, tornaram-se mais visíveis”. Ao longo da pandemia, o PE foi capaz, diz, de abordar estas desigualdades “em todas as comissões em que trabalhamos, da política externa à economia, do orçamento ao mercado interno, da agricultura às pescas”. Mas em casa de ferreiro, espeto de pau: “por exemplo, na Comissão Especial de Inteligência Artificial, no relatório final participaram apenas homens, tanto os relatores-sombra como o relator”, contrariando os princípios defendidos de que haja diversidade também nas escolhas das comissões. Leitão Marques concluiu citando Caroline Criado Perez no seu livro Mulheres Invisíveis: “a verdadeira razão porque excluímos as mulheres é porque vemos os direitos de 50% da população como os interesses de uma minoria.”​

A social-democrata Maria da Graça Carvalho - recentemente nomeada para os prémios atribuídos anualmente pela Parliament Magazine pelo seu trabalho nas áreas da Estratégia Digital e Mercado Único - ressaltou que “precisamos de uma maior representatividade das mulheres para que a perspectiva de género esteja presente, quer falemos de energia digital, ambiente, mercado interno, agricultura ou transportes”. Afirmou ainda que é “fundamental que, através das propostas e dos relatórios elaborados por este Parlamento, se promova a maior participação e liderança das mulheres nos diferentes sectores da sociedade”.

Da mesma família política, contudo, vieram duras críticas ao relatório. A democrata-cristã sueca Sara Skyttedal afirmou que “existe uma guerra na Europa, mas não é uma guerra entre géneros, como se poderia pensar ao ler este relatório.”

Já Robert Biedrón, presidente da Comissão FEMM e o primeiro homem a intervir neste debate (haveria apenas mais dois), afirma que “há um lugar especial para os homens na luta pela igualdade”. “Este não é o horário nobre para um debate. É esta a realidade em que ainda vivemos. Vejam a lista de oradores. Onde estão todos os nossos colegas homens? Este não é um tópico só das mulheres”, alertou o eurodeputado, falando para os colegas que, ausentes, talvez não recebam a mensagem.

A jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu.

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