O mesmo nariz adunco, a mesma estatura magra, o mesmo sorriso míope, igual antecipação de calvície. Podia ser um replicante. E a ser verdade que muitos de nós não variam na atracção que sentem por determinado tipo físico, ali se revelava a prova: o segundo marido era uma cópia rejuvenescida do primeiro.
Serão os humanos menos imprevisíveis do que gostariam de se imaginar? Olhando para aquele segundo marido e para a história e literatura universais, tudo indica que sim.
Os humanos tendem a repetir-se. Só assim se percebe a perenidade de certas obras com que continuamos a dialogar, caso do extraordinário A Retirada dos Dez Mil de Xenofonte, um grego que viveu 400 anos antes da nossa era, e vem isto a propósito de o tema que nos ocupa a todos ser a guerra e já não a pandemia.
E sem querer desqualificar, pelo contrário, tudo o que se aprende nesse livro de aventuras escrito há mais de dois milénios sobre a natureza humana e o significado complexo da palavra democracia — e não o ler é imperdoável: há uma versão de Anábase transposta para o português luxuriante de Aquilino Ribeiro, reeditada pela Bertrand em 2014 —, diria que não menos se aprende com um vizinho bonachão que, descrevendo cena de pancadaria da sua mocidade resultado de uma valente cardina, cujos beligerantes haviam sido ele próprio e um rival aos amores, concluiu o relato no mesmo estilo vivo e despretensioso do grego: “… e veio de lá o meu pai, ai que tu matas o moço já eu o tinha bem arrimado à parede com duas valentes murraças e eu ‘pró meu pai, qual quê, mato-o lá eu, pois se é o meu melhor amigo!”. E era.
Estava, pois, a Europa posta em sossego (excepto o Leste, retomando termo vulgarizado nos tempos da Guerra Fria), tão civilizacionalmente evoluída que os grandes combates intelectuais já só tinham como pretexto les liaisons dangereuses entre a semântica e a cultura patriarcal, quando Putin invadiu a Ucrânia.
A paz durava no continente — com excepção do conflito na antiga Jugoslávia — desde o fim da II Guerra Mundial. Um período de escassas décadas identificado por Paul Krugman num artigo no New York Times de Maio de 2018 como um milagre da história: “Se tivéssemos de identificar um lugar e um tempo onde o sonho humanista — a visão de uma sociedade que oferece uma vida digna a todos os seus membros — esteve mais perto de se realizar, esse lugar e tempo seriam certamente a Europa Ocidental nas seis décadas após a II Guerra Mundial. Foi um dos milagres da história: um continente devastado por ditaduras, genocídios e guerras transformou-se num modelo de democracia e prosperidade amplamente compartilhada”.
Talvez mal-habituados, desatentos aos sinais e/ou convencidos de que a guerra ficara lá para trás e apenas tinha lugar em territórios habitados por seres menos sofisticados muitos deles deploráveis, deslembrados de que a nossa última, mundial, acabara na verdade ontem, fomos querendo acreditar que a podíamos manter além-fronteiras, uns clamando pelo fecho dos portões de acesso, outros pagando à Turquia para guardar bem guardados os deserdados da Terra, outros, ainda, entregando-se à caridade cristã de acolher os desvalidos que chegavam (sempre) de longe. Facto inegável: a nossa superioridade moral, a crescer à conta de uma revisão sentimentalista da história recente, enquanto, paradoxalmente, facínora tornava-se adjectivo corrente para classificar antepassados mais remotos. E não, não é por acaso que o até há pouco impensável comércio de títulos cor-de-rosa sobre Auschwitz-Birkenau se transformou, entretanto, num negócio milionário.
Bastaria, porém, não sair das bibliotecas. Nos livros fundadores, da Ilíada de Homero à Eneida de Virgílio, passando pela Bíblia hebraica a que o Novo Testamento tentou dar um colorido mais pálido, a guerra é tema dominante. Além desses, claro, não faltam obras mais actuais, nomeadamente de história e biologia, para nos recordar que a crença numa imunidade adquirida em poucas décadas contra o vírus belicista só podia ser manifestamente exagerada.
E o caso é que Putin invadiu mesmo a Ucrânia. Depois de vários anúncios de invasão extemporâneos, a recordar a fábula de Esopo (outro Antigo) do pastor mentiroso que grita lobo, houve uma noite em que as tropas russas, à semelhança do que já haviam feito na Crimeia em 2014, violaram abertamente as fronteiras. Começava a guerra. Não na Síria, não no Iraque, na Líbia, Somália, Sudão, ou etc., etc., mas no “celeiro da Europa”.
Todas as guerras comungam de um aborrecido atributo: sabe-se (mais ou menos) como têm início, embora dificilmente se possa prever como acabam. Esta, que ainda agora começou, tem a agravá-la o armamento nuclear que Putin já veio lembrar ter à sua disposição (para o que der e vier?), agora com a ajuda da Bielorússia que acaba de disponibilizar o seu território para o estacionamento de arsenal nuclear russo.
No livro de Niall Ferguson, A Guerra do Mundo (Livraria Civilização, 2006), o historiador, crítico da invasão, mas também do presidente Biden que vem comparando a Jimmy Carter, alude à Crise dos Mísseis de Cuba de 1962, quando, a 27 de Outubro, o mundo esteve à beira de um conflito nuclear. “O secretário da Defesa americano Robert McNamara lembra-se de ter saído da Casa Branca para saborear o pálido pôr-do-sol: ‘Para o contemplar e cheirar, porque julguei ser aquele o último sábado que alguma vez veria’, recordou ele. Precisamente naquele momento, em Moscovo, Fyodor Burlatsky, um conselheiro sénior do Kremlin, telefonou à sua mulher e disse-lhe: ‘larga tudo e sai de Moscovo’”. A crise teve fim com o acordo assinado por John F. Kennedy e Nikita Khrushchev: os soviéticos retiraram os mísseis de Cuba e os norte-americanos comprometeram-se a não invadir a ilha. JFK seria assassinado no ano seguinte, a 22 de Novembro, e Nikita acabaria afastado do poder em Outubro de 1964; os dois tinham salvado o mundo de uma catástrofe de proporções apocalípticas.
“O imperador Francisco José, escreve Joseph Roth n’A Marcha de Radetzky, nostálgica e comovente epopeia do império dos Habsburgos, não gostava das guerras, porque sabia que ‘se perdem’. O velho e sábio imperador sabia, portanto, que todos perdem a guerra, mesmo quem no fim se julga vitorioso. (…) Quem escreveu estas palavras n’A Marcha de Radetzky, não foi um pacifista amante de manifestações, assembleias e jejuns, mas sim um soldado que tinha fielmente combatido pela sua pátria, pela seu imperador na Primeira Guerra Mundial, que amava as bandeiras e o odor a sebo dos quartéis e que — precisamente porque tinha visto os grandes massacres e os entusiasmos, embora generosos mas ingénuos e desprevenidos, que lhes tinham aberto o caminho exaltando a priori a guerra — conhecia directamente a bestialidade, a banalidade, a insensatez, a lamacenta e sanguinária palermice da guerra e do seu fascínio. Joseph Roth, devoto dos estandartes e dos galões da sua armada e desmistificador da idolátrica febre bélica, não é um caso isolado: é frequente aprender-se a conhecer — e a rejeitar — a face mortal e obscena da guerra não só e não tanto nas páginas de ideólogos pacifistas, que não sabem o que ela é e de que nasce e aonde vai buscar a sua terrível sedução, como nas páginas de quem regula contas com a sua realidade, com as suas motivações, às vezes com a sua necessidade, mas sabendo concretamente que ela é o mal.”
Este excerto, retirado de A História Não Acabou de Claudio Magris (tradução de José Colaço Barreiros, Quetzal, 2011 — e já agora: A Marcha de Radetzky foi publicado pela Cavalo de Ferro em 2019), diz quase tudo o que é preciso saber sobre a guerra. Diz, nomeadamente, que o elogio da morte é das armadilhas mais obscenas a que a ela nos sujeita. Assim, ainda bem que a morte anunciada, e a que tantos chamaram indecorosamente gloriosa, dos treze soldados ucranianos estacionados numa pequena ilha no Mar Negro se provou falsa.
Depois, tema entretanto esquecido, há a pegada ecológica. Qual a contribuição da guerra para o descalabro ambiental? E cada vez mais George Calin parece certo: “The planet is fine… the people are fucked”.