Putin, relíquia do passado ou sintoma do futuro

O Presidente russo quer recuperar a glória imperial e soviética ou ganhar posição na geopolítica do futuro? Seja qual for a resposta, descobri-la é um imperativo categórico, sempre tendo em conta que “ele não é louco. É muito mau”.

Foto
O Presidente da Rússia, Vladimir Putin ETIENNE LAURENT/EPA

Um líder cada vez mais isolado no seu bunker, e que ouve apenas um pequeno círculo de pessoas que não estão habituadas a contrariá-lo; um homem cujos anos no poder alimentaram uma “síndrome de arrogância”, na definição do psiquiatra ucraniano Semyon Gluzman, e que procura recuperar a glória passada do império soviético.

Ou um produto de um século XXI muito mais darwinista, em que a lei do mais forte prevalece, um homem maléfico incapaz de empatia e que pretende ganhar poder no mundo, sem limite de meios e insensível ao que pensam dele?

De que líder político estamos a falar psicologicamente quando falamos do Presidente russo, Vladimir Putin?

Para Nina Kruscheva, neta do antigo líder soviético Nikita Kruschev, hoje professora de Relações Internacionais na New School, em Nova Iorque, Putin é um líder “completamente não moderno, porque nos leva para o século XVIII, para Catarina, a Grande”. Daí que tenha apanhado muita gente de surpresa ao invadir mesmo a Ucrânia, desafiando uma frente ocidental unida.

Tom McTague defende uma tese diametralmente oposta num artigo publicado este mês na The Atlantic: “Na verdade, embora não saibamos como é que será o século XXI, é razoável assumir que estará mais perto da visão darwiniana de luta geopolítica de Putin do que do tipo de globalização harmoniosa e ‘assente em regras’ que muitos no Ocidente esperavam.”

Quantas vezes nos deixámos confundir e “interpretámos erradamente os produtos malignos da modernidade como sendo restos do passado?”, pergunta McTague. E talvez seja isso que mais nos surpreendeu na decisão de Putin de avançar militarmente para a Ucrânia. Como afirma Patrick Porter, especialista em segurança da Universidade de Birmingham, citado no artigo da The Atlantic, “as pessoas dizem ‘isto não se faz no século XXI’, mas de que século XXI estão a falar?”

Na visão de McTague, o Presidente russo é até mais moderno (não significando isto, como o autor frisa, qualquer classificação positiva) do que os outros que se agarram a uma perspectiva de virar do milénio, atrasada 22 anos, num mundo cujo tempo se tornou bem mais apressado, mais nacionalista, mais autoritário. A Rússia que está a invadir a Ucrânia hoje, que põe o seu arsenal nuclear em estado de alerta máximo, não é a Rússia dos czares ou dos sovietes, “mas algo completamente novo e assustador”.

Sem ser este um diálogo, Nina Kruscheva contraria essa perspectiva na entrevista ao podcast da Vanity Fair Inside the Hive, ao afirmar que Putin não é muito diferente de outros líderes russos antes dele, “preocupados com o seu lugar na História” e obcecados com “o sonho de todos os filósofos patrióticos russos: estes três territórios, Rússia, Bielorrússia e Ucrânia unidos num só”.

A neta do Presidente que passou pela crise dos mísseis de Cuba, que colocou as duas grandes potências nucleares de então (Estados Unidos e União Soviética) à beira de uma guerra, não morre de amores pela figura do homem que está no Kremlin, “um homem baixo de 1,70 m que insiste que tem 1,75 m, para ser um bocadinho mais alto”, mas estudou-o bem para o seu livro In Putin's Footsteps: Searching for the Soul of an Empire Across Russia's Eleven Time Zones.

“Ele não é louco. É muito mau. Tenho a certeza que é completamente saudável”, diagnostica Semyon Gluzman, presidente da Associação Ucraniana de Psiquiatria, homem que esteve dez anos nos campos de trabalho soviéticos por criticar o uso da psiquiatria pela URSS como arma para suprimir a dissidência. “É diferente, sádico, não pensa nas outras pessoas, nem sequer no povo russo, só nele próprio”, acrescenta em entrevista a John Sweeney na New/Lines.

Gluzman recusa-se a chamar-lhe louco porque não quer que a doença lhe sirva como desculpa para os seus actos que são terríveis porque ele assim o decide e não porque ouve vozes que lhe dizem para o fazer. Putin, como Hitler e Estaline no seu tempo, refere o psiquiatra de Lviv, “não é insano”.

O que não quer com isso dizer que Putin não esteja tão alienado da realidade como Hitler no seu bunker ou o Estaline paranóico mandando assassinar todos aqueles que julgava conspirarem contra ele.

Como escreve Michael Day no inglês i, “Putin senta-se agora num bunker político virtual”, onde mesmo as mais altas figuras do Governo “têm de contornar obstáculos e esperar semanas pela hipótese de ter uma reunião cara a cara com ele”. Encontros que se tornam cada vez mais esporádicos, porque o Presidente russo reduz os contactos ao círculo mais íntimo e prefere falar por telefone ou através do Zoom.

Tanto tempo no poder e tanto poder acumulado “mudou-o para pior”, escreve Day: “Como é que a psique de alguém não se transformaria com tanto poder sem freio?”

“Ele acredita que foi escolhido pela divina providência para punir os ucranianos libertados”, escrevia Andrei Illarionov, antigo conselheiro económico de Putin, depois da invasão da Crimeia pelas tropas russas em 2014, citado num artigo da Foreign Affairs.

Nina Kruscheva tem, para ela, que Putin não é mais nem menos que outros líderes russos todo-poderosos, sempre preocupados em saber se “o gigantismo do seu Estado, a percepção imperial” correspondia verdadeiramente à realidade. “Por isso são tão inseguros”, sempre a questionar se são mesmo grandes.

No entanto, como referia no mesmo artigo da Foreign Affairs Alexander Dugin, cientista política e mentor ideológico de Putin, a ocupação da Ucrânia fazia todo o sentido em 2014, como faz agora e nada tem a ver com delírios de grandeza. Vencendo a guerra, dizia Dugin, Putin poderia começar a travar a ideologia americana na Europa: “É o objectivo do total Eurasianismo – a Europa de Lisboa a Vladivostoque. O Grande Império Continental Euro-asiático.”

Por isso, aconselha McTague, “compreender Putin como fenómeno moderno é de fundamental importância se queremos evitar o erro categórico de assumir que o perigo que ele representa é o de voltar atrás no tempo e não de o acelerar, recriando mundos antigos em vez de forjar novos”.

Sugerir correcção
Ler 17 comentários