E a culpa, morre novamente solteira?

Foram anulados 80% dos votos dos emigrantes na Europa. Continuamos a brincar com os eleitores. E a desrespeitar a democracia. E a desencorajar o voto e a vontade de participar.

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Nuno Ferreira Santos

157 mil votos por correspondência anulados. 157 mil votos do círculo da Europa anulados e o primeiro pensamento, óbvio: e o meu voto? E o nosso voto?

Refaço os passos, enviei a cópia do Cartão de Cidadão? Ou não? O boletim de voto, o envelope verde, as instruções lidas dez vezes de trás para a frente e da frente para trás, a fotocópia do Cartão de Cidadão a acompanhar o envelope de retorno, a tua fotocópia e a minha, uma em cada envelope, até tirámos uma fotografia junto à caixa de correio e na ausência de remetente a certeza de nunca mais ver o voto.

E por nunca mais ver o voto esta mesma dúvida, agora eterna: será que fizemos tudo bem? E o nosso voto? O nosso voto contou? Não. Não contou e mais uma vez não contou se teve o azar de ser um dos 80% de votos dentro de urnas cheias de boletins válidos à mistura com outros tantos boletins sem as necessárias cópias do Cartão do Cidadão. Portanto, anulem-se os votos todos mais este direito supostamente universal, supostamente constitucional, supostamente garantido, de poder votar em quem achar de direito, de poder votar em quem acredito, quem defendo e quem quero para meu representante a tantos milhares de quilómetros de distância de volta a casa, junto ao mar, na areia, na praia de onde ao longe vejo partir Portugal.

Outra e outra e outra e outra e outra vez. De quem é a responsabilidade? De quem está à frente de casa mesa de voto por simples incompetência? Do PSD pelos protestos ao defender a lei vigente? Do PS ao promover a contagem de todos os votos independentemente da sua validade, apesar de ter toda a razão quanto à falta de anonimato de quem vota? Mas se quem o diz é a lei e a lei está, pois claro, mal, por que carga de água não se mudou a lei quando o mesmo problema da anulação de votos se levantou em 2019?

Porque não era uma prioridade. Porque quem deixou o país para trás não é, nem nunca será, uma prioridade. Veja-se desde logo a evidente ausência de proporcionalidade entre o número de eleitores inscritos, cerca de 1,5 milhões, e os deputados eleitos, apenas 4. Por esta ordem de ideias, 10 milhões de portugueses elegem 25 deputados, contas redondas. Mas não.

Se o problema do anonimato persiste, e alguém me diga onde foi parar a fotocópia do meu Cartão de Cidadão porque ainda não sei, que se altere a lei enviando os votos por correio registado. Mas se esta opção carece de meios “derivado” do custo, porque não a impressão, envio e contagem dos boletins de voto por cada embaixada e consulado?

Infelizmente, a culpa não só morrerá solteira como só daqui a quatro anos e dez meses se colocará o mesmo problema. Porque quem vive lá fora existe única e exclusivamente para as remessas e para voltar no Verão.

As primeiras eleições foram aos ombros da minha mãe numa sala a abarrotar de gente e se ia aos ombros era por já não haver espaço no chão para andar mas também festejar e celebrar a liberdade de decidir. A verdade era que votar era, e é, uma festa, é a alegria da liberdade, é estarmos todos juntos outra vez, é reencontrar velhos conhecidos, é um abraço e um beijo, dois beijos, muitos beijos, o calor, as conversas, as saudades, as discussões mas também os mexericos, é a sociedade na rua a dizer de sua vontade com a melhor roupa de domingo, é um olá e a promessa de um até já.

Independentemente da distância. Porque o meu voto, o nosso voto, é uma carta de mim para Portugal, de mim para um país inteiro, uma carta para 10 milhões de compatriotas, irmãos na língua e no sangue e nesta cruz os meus lábios e nos lábios a minha palavra, tão válida como a vossa.

Desconheço quantos anos serão ainda precisos até que esta vontade seja tão respeitada como expressa. E sim, nos primeiros anos da diáspora íamos de propósito a Portugal só para votar. Até porque voar é mais fácil e ao menos assim ainda damos mais um tiro na saudade mesmo a tempo de voltar ao aeroporto que no dia a seguir é dia de trabalho. Tão longe.

Mas vale a pena. Vale a pena ter a certeza de que a nossa vontade mais esta maneira de pensar contam. E por isso talvez volte a voar só para votar. Talvez volte a voar por dois dias apenas. Porque em dois dias apenas se decide uma vida inteira.

Até lá? Até lá continuamos a brincar às eleições.
Até lá continuamos a brincar com os eleitores. E a desrespeitar a democracia. E a desencorajar o voto e a vontade de participar.
Até lá, por favor, mude-se a lei para que cedo vejamos os nossos votos finalmente válidos no fundo da urna.
Até lá, tudo isto é apenas cinza mais os sinais de fumo que a acompanham.

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