O desejo
Na palavra ‘desejo’ ergue-se uma montanha russa, uma catedral de sentimentos sem hierarquia. Um amontoado de palavras indecifráveis.
Estudo o passado da mesma forma que o meu pai pega na lupa para ver os seus últimos movimentos bancários. Preciso de ver maior para me perceber. Já pensaram na forma como ampliamos o passado e nos parece melhor do que foi? É uma falcatrua repetida: passamos à frente (quando podemos) do que não foi bom, do que nos magoou, e fica a coroação dos dias vividos como os melhores de sempre. Eu gosto do que está para vir. Tenho sempre esperança de nos fazermos melhores com o tempo.
Aqui neste lugar que ocupei, que já era meu porque as palavras se constroem dentro de mim, volto vezes sem fim à praia. Inventei a minha que é uma espécie de manta que estendo sobre a memória. Quando há dias me perguntaram que Verão era o meu, respondi: aquele dos três meses. Um Verão contínuo que dura até hoje. Sempre o mesmo. Esse Verão nunca acabou e não se mistura com o Verão de hoje. O meu Verão onde senti os primeiros arrepios que não vinham só da água fria do mar.
Houve um ano em que fui levada para o Algarve. Estranhei-me fora da praia que não reconhecia. Lembram-se da primeira vez em que foram fazer praia longe de casa? Queríamos o sol e desejávamos viver qualquer coisa mais. No fundo sair do nosso território obriga-nos a projectar outros. Eu não escapei à fantasia.
Era depois de chegarmos da praia e da (di)gestão obrigatória dos banhos, que me punha à varanda a ouvir a rádio. E na rádio, esse aparelho de onde saíam vozes, músicas e sensações até aí desconhecidas, eu ouvia aquilo que fazia o meu coração bater mais depressa. Mais depressa do que a temperatura que fazia o meu cabelo secar.
A varanda de uma cidade que desconheço fez-me sentir pela primeira vez um sentimento ainda sem contorno a que chamo agora desejo. Precisei da lupa para perceber que era o desejo a vir ter comigo. Debruçada na varanda, com o cabelo escorrido e puxado para trás, ouvia a canção que a rádio fazia crescer: era o Private Dancer de Tina Turner. Eu devia ter 13 anos. Sabia muito pouco do que ali se cantava e, em boa verdade, o que se dizia contava muito pouco para mim que não tinha vivido nada. Havia uma temperatura na canção que chegava até mim e me fazia acreditar que haveria mais vida para além da que eu conhecia. Nunca tinha pegado na lupa mas o mundo, mesmo numa breve canção, afigura-se maior do que é.
Ali ficava eu na varanda a pensar que um dia viveria um amor, que saberia dar um beijo, que os telediscos não eram inventados porque precisam de realidade para os inspirar.
Quando vim do Algarve trazia a canção comigo. Cresceu em mim a vontade de sentir outras temperaturas. Não me lembro o que se seguiu, mas tudo levou o seu tempo. Era outra a velocidade das coisas. Eu gosto do verão que nunca acabou.
É possível que aos miúdos que têm agora a idade que já não me pertence lhes interesse pouco a palavra ‘desejo’. Eu acho que na palavra ‘desejo’ se ergue uma montanha russa, uma catedral de sentimentos sem hierarquia. Um amontoado de palavras indecifráveis. Desejo é o que me faz acordar de manhã e adormecer mais completa à noite. O desejo veste-se e despe-se para nos perseguir ou abandonar, mas sem ele somos uma nação apática que se contenta com uma mão no teclado e uma fotografia com a câmara virada para nós. Já poucos de nós dizem desejar algo: nós queremos ter. Os mais novos vão conseguir.
O desejo encerra em si a fantasia que esta vida real já não comporta. O desejo é um bailado de palavras que nos contorna o corpo e pode dar a volta à cabeça. É um estado de espírito quase demencial que nos faz sentir vivos. Uma palavra obsoleta. Uma sensação que deixou de ter nome.
Um dia vamos encontrar outra palavra para o desejo e o desejo será encontrado à lupa nos lugares de sonho como o cinema, os livros ou as canções. Ou naquela praia de onde nunca saí no Verão contínuo da minha memória.
Era uma varanda onde o sol se despedia, o meu cabelo não tinha pressa de secar e a canção irrompia fazendo-me estremecer.
Todos nós queremos essa dança privada cujo primeiro par se chama desejo.