Zero sinistralidade: a cenoura que o Governo podia dar aos municípios

É inaceitável, em pleno século XXI, continuarmos a ter mortes e feridos nas ruas e avenidas das nossas cidades decorrentes de atropelamentos, despistes e colisões de automóveis.

O setor dos transportes é o setor responsável pela maior fatia da emissão de gases de efeito de estufa. Mesmo que conseguíssemos que todo o setor dos transportes passasse a funcionar com energia limpa, isso não resolveria os problemas das cidades.

Falando só da parte do setor de transportes urbano individual, manter o número de automóveis a circular nas nossas cidades, passando, por exemplo, a ter apenas automóveis elétricos, não resolve o problema da sinistralidade, o levantamento de partículas finas, nem tampouco o problema da ocupação do espaço público!

E a questão da sinistralidade é alarmante. É, de facto, um elefante no meio da sala que toda a gente tem ignorado. Como dizia há dias o presidente da ANSR, se caíssem três aviões num ano em Portugal, como reagiríamos? E a estes há a acrescentar os chamados “feridos graves”, que são pessoas que ficam com mazelas para a vida, umas mais graves que outras.

Contas feitas, a sinistralidade custa ao Estado entre 2,5 e 3,5 mil milhões de euros por ano.

É inaceitável, em pleno século XXI, continuarmos a ter mortes e feridos nas ruas e avenidas das nossas cidades decorrentes de atropelamentos, despistes e colisões de automóveis. O único número que podemos aceitar é o zero, e é para essa visão que temos de caminhar!

E aqui como é que pode o Estado agir, se a maioria dos acidentes se dá em ruas e avenidas da competência dos municípios e o segredo para prevenir e reduzir a sinistralidade está no desenho da cidade, das ruas, das avenidas?

Na verdade, os municípios têm o dever de cuidado, o que obrigaria a que os executivos municipais garantissem que o desenho das ruas e avenidas reduzissem o risco de atropelamentos, colisões ou despistes. Aquilo que verificamos é que tal não acontece, e o dever de cuidado é ignorado.

Nos casos em que a sinistralidade se dá nas estradas que são competências da Infraestruturas de Portugal, das duas, uma, ou o Estado passa a competência para o município, com reforço financeiro, e descentraliza verdadeiramente as estradas dos concelhos, ou intervém nas estradas com uma equipa disruptiva e inovadora, dedicada a implementar técnicas de acalmia de tráfego.

Se se poderia ir pela via “do chicote” para fazer “o burro andar”, a verdade é que a solução da “cenoura” poderá ser mais interessante e funcionar melhor.

Todos os anos, o Estado reparte os recursos públicos com os municípios ao abrigo do Regime Financeiro dsa Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais. Há uma subvenção geral determinada a partir do FEF – Fundo de Equilíbrio Financeiro, uma subvenção específica determinada a partir do FSM – Fundo Social Municipal, e duas participações variáveis – do IVA e do IRS. E há ainda um mecanismo de acerto de contas.

A estas subvenções poderíamos juntar uma terceira subvenção, determinada a partir de um novo Fundo de Segurança Rodoviária Municipal. Mas este apenas funcionaria a posteriori, ou seja, perante uma efetiva redução de sinistralidade no município nos últimos dois anos é que seria determinado o valor de subvenção que seria transferido para o município em questão.

A que é que isto levaria? Levaria a que os municípios tomassem medidas efetivas no terreno, investindo na recuperação do espaço público para as pessoas, pondo em prática o dever de cuidado através da introdução das medidas de redução de velocidades como sejam: redução de largura e número de vias, aumento do número de passadeiras para peões ao nível dos passeios, criação de ciclovias realocando o espaço automóvel, criação de corredores bus, introdução de mais semaforização, entre outros.

Depois deste investimento no espaço público, os municípios iriam ver a sinistralidade no seu território ser reduzida e acabariam por receber uma subvenção extra nos anos seguintes.

Poderia ainda haver um mecanismo de acerto de contas que penalizava o município, caso aumentasse o número de vítimas nesse território.

No fim, o valor que sairia dos cofres do Estado seria o mesmo, visto que o número de vítimas iria reduzir-se, mas contrabalanceava com a subvenção a atribuir aos municípios.

Ao fim de alguns anos teriam sido salvos milhares de vidas, e as nossas cidades ficariam melhores.

Engenheiro, doutorado em Sustentabilidade do Ambiente Construído. Membro do Conselho Consultivo para a Mobilidade Sustentável da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicletas

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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