Sim. E voltará a errar. Para nosso bem, manter-se-á a perpétua dinâmica cujo horizonte assusta quem precisa de tomar decisões. E acontece porque, algures no edifício interpretativo da razão humana, alguém se esqueceu de explicar: do que falamos quando falamos sobre ciência?
Falamos do maior empreendimento da nossa civilização. Aos ombros de gigantes, construímos uma linguagem que nos permite ler o infinito livro da existência. Mas não deixam de ser gigantes humanos. E, como tal, partilham umbilicalmente a condição à sua obra. A tentativa-erro não é o anacronismo simples de uma resolução de problemas, mas sim a compreensão da vastidão do que nos rodeia. É com a acumulação das experiências positivas - e (principalmente) das negativas - que aperfeiçoamos o instrumento imperfeito.
Mas tomar decisões implica (tentar) o consenso. Consenso que em decisões baseadas na ciência, por vezes, se disfarça de mutuamente exclusivo da realidade. E assim se arrepia subitamente a espinha do cientista, quando o decisor invoca a “falta de consenso dos especialistas” para justificar que não consegue lidar com a pandemia de SARS-CoV-2. E as campanhas de desinformação, premeditadas ou negligentes, ajudaram a descerrar um horizonte negativo ao explorar os limites de comunicação de ciência. Isto é importante quando se fala em políticas baseadas em ciência. Na era da desinformação, esta realidade informativa é impulsionada pelas repercussões sociais da globalização e pela prontidão de um esforço científico cooperativo sem precedentes.
Mas sempre foi assim? Facilmente a célere névoa digital nos impede de parar para reflectir. E a História da Ciência em Portugal responde a esta questão. Também não se conhecia a peste bubónica no Porto no início do século XX. Também não havia consenso entre os cientistas. E ao não se saber compreender como a ciência funciona, algo familiar aconteceu: pactos de silêncio da imprensa; negação da peste; confronto popular com as medidas sanitárias; impreparação dos mecanismos sanitários. (Parece ontem?) Verificou-se, tal como hoje, que o conhecimento científico é filtrado através de uma população que não o consegue avaliar. Tal como Latour o fez por nós no século passado, urge reconhecer que o conhecimento produzido pelas instituições científicas falha aproximar a ciência à compreensão de uma sociedade tecnologicamente tão sofisticada, à distância de uma qualquer story viral.
É que ontem, tal como hoje, os cientistas dividiam-se nas explicações e nas medidas para defender a saúde pública. E ainda bem. Estamos a falar de situações novas, comparáveis à descoberta de uma tecnologia de ponta, com a qual nem todos estarão prontos a trabalhar. É a diversidade da ciência que permite que alcancemos o consenso. A falta de consenso analítico entre os cientistas promoveu, historicamente, situações de debilidade ao processo legislativo. É por isso que esperar que a ciência esquematize uma qualquer forma binária de guiar a nossa vida é, por si mesmo, um insulto ao método científico.
O perigo é real. Ao falharmos em perceber como funciona a ciência, não seremos capazes de a compreender. A má interpretação, partilha selectiva ou a simples descontextualização não implicam corrupção científica. Mas sabemos que em muito influenciam a forma como os decisores respondem ao destino de milhões. E ao não percebermos que o erro é uma das fundações da ciência, nunca compreenderemos como viver em pandemia.