Henrique Sá Pessoa, sem medos da food porn: ComTradição pelo Mundo leva-nos a viajar sem sair da cozinha
A ordem é para viajar, mas de cinto desapertado. Esta segunda-feira estreia-se um programa recheado de sabores internacionais e temperado por Sá Pessoa, o chefque nunca foi a Paris mas sabe levar as suas receitas a qualquer destino. Pelo caminho, fala em abrir o “leque de horizontes gastronómico-visuais”, numa conversa com direito a uma receita do Peru: uma Causa de Atum para abrir o apetite.
“É muito mais fácil enganar um português com uma má pizza, do que com um mau bacalhau à Brás”, garantia Henrique Sá Pessoa, em Fevereiro de 2020, a propósito da estreia de ComTradição no 24Kitchen. O programa tornou-se o mais visto do canal, prosseguiu para uma segunda temporada e materializou-se num livro de culinária. Quase dois anos (e uma pandemia) depois, o chef regressa à televisão com horizontes expandidos e contrastes acentuados. No programa anterior, lançava-se à reinvenção de pratos tradicionais portugueses, inspirado pela obra de Maria de Lurdes Modesto; agora, faz da cozinha internacional a sua ementa. Sim, pega em pratos emblemáticos de vários países. Mas não, não o vamos ver fazer pizza.
Com estreia marcada para 17 de Janeiro, às 15h, no mesmo canal (onde fica de segunda a sexta-feira, a esta hora e com repetição às 21h), ComTradição pelo Mundo vem com o passaporte carimbado pela gastronomia de 15 países, cada um deles “visitado” em duas fornadas de menu completo (entrada, prato principal e sobremesa), num total de 30 episódios.
Itália, já se percebeu, faz parte da rota. “Por acaso não fiz pizza, mas fiz focaccia”, revela. “Não sei se vou enganar um italiano, mas um português provavelmente consigo enganar”, graceja. Daqui ninguém sai enganado. Quem tem acompanhado ComTradição sabe que não é programa aconselhado a puristas. A ideia continua a ser propor reinterpretações, com a receita original como ponto de partida e um toque de originalidade à chegada – e a certeza de que, “quem replicar a receita, à partida, vai ficar bem servido”, assegura o chef que, entre outras distinções, ostenta duas estrelas Michelin pelo lisboeta Alma.
“Deu-me imenso gozo, porque algumas receitas eu já não fazia há muitos anos, outras fiz pela primeira vez e outras pura e simplesmente improvisei. Por exemplo, fiz uma feijoada à brasileira com enchidos portugueses que poderá suscitar alguma crítica, mas a piada do programa é exactamente essa”, argumenta.
Além de Itália e Brasil, o cardápio viaja do Peru à China, passando por Espanha, França, Grécia, Índia, Japão, Líbano, Marrocos, México, Tailândia, Reino Unido e EUA. “Tentei escolher o máximo de países que eu já tivesse visitado e que já tivesse tido algum contacto com a gastronomia”, esclarece sobre o processo de selecção. Os dois últimos eram obrigatórios: “foram dois países onde eu vivi”. Do Reino Unido, trouxe “fish & chips, que é um clássico”, mas também o bife Wellington e o sticky toffee pudding; quanto aos EUA, “não podia faltar o hambúrguer” nem “uma das minhas tartes favoritas, que é a pecan pie (de noz pecã), que é uma bomba calórica mas é maravilhosa”.
A Austrália, onde o chef também viveu, trabalhou e aprendeu, parece ser a grande ausente. Parece. Só “não entrou porque num dos últimos episódios do ComTradição fiz três receitas australianas, no especial de Natal”. A verdade é que, embora não faça parte da rota, está na sua base. “Acho que a minha preparação para a cozinha do mundo vem muito da Austrália, porque realmente é um melting pot de gastronomias. Foi onde tive contacto com a cozinha tailandesa, indiana, japonesa…”
A Índia é um dos três países que entram em ComTradição pelo Mundo sem que o chef os tenha visitado, juntamente com a Grécia e o Peru. Mas estão ou estiveram nos planos em algum momento. A viagem ao Peru, por exemplo – ao qual é dedicado o primeiro episódio (e do qual faz parte a receita abaixo) –, chegou a estar na agenda, mas teve de ficar para depois, “devido aos eventos dos últimos dois anos”. Este trio de destinos junta-se, no mapa dos desejos, a uma Paris constantemente adiada. Nunca lá foi e admite, em tom de brincadeira, que “para um chef de cozinha dizer que nunca foi a Paris é quase um crime”.
Se a pandemia adiou muitos intentos, gorou outros tantos e atrapalhou mais uns quantos – como o restaurante Chiado, em Macau, que “está fechado há um ano” ou o recém-inaugurado Arca, em Amesterdão, “que ao fim de um mês teve de entrar em hibernação”, dado que “os nossos amigos holandeses estão em lockdown” –, por outro lado encorajou novidades como esta expansão de ComTradição. Em tempos de tantos impedimentos e limitações às viagens – para não falar nos efeitos devastadores para o sector da restauração –, o chef acredita que “as pessoas precisam de ver conteúdos televisivos que sejam inspiradores, que de alguma forma as tirem desta realidade um bocadinho limitativa e claustrofóbica”.
Frisa também o poder da gastronomia na activação de memórias (caso da erva-príncipe sua favorita, que muitos espectadores associam logo à Tailândia) e da sensação de conforto (caso da sopa que, quando viajava, “era sempre a primeira coisa que queria comer” ao regressar a Portugal), para acrescentar: “sem dúvida que através da gastronomia e até mesmo em casa as pessoas podem ter sensações completamente diferentes no seu dia-a-dia, criando pratos ou fazendo pratos que realmente as transportam para outros destinos”.
Mas houve outra motivação para o novo programa, que Henrique Sá Pessoa não se cansa de sublinhar ao longo da conversa. Uma diferença fundamental que vai para além do palato, mas que também o estimula: o investimento no impacto visual. Mesmo sendo riquíssima e tendo “um receituário infinito”, “a nossa gastronomia, por mais voltas que lhe demos, acaba por ser repetitiva em termos cromáticos”. Há “muitos castanhos, verdes escuros, refogado”, exemplifica, sem esquecer o amarelo dos ovos (e mais ovos) da doçaria tradicional.
Neste campo, “vai-se notar uma grande diferença”, assegura. À variedade de sabores corresponde uma diversidade cromática que “vai enriquecer muito o olhar do programa” e fazer “sentir uma grande abertura nesse leque de horizontes gastronómico-visuais”. “Houve realmente esse compromisso de tentarmos ir buscar as imagens – como se costuma dizer – mais pornográficas, não é?”. Ou, por outras palavras (mas ainda entre risos), “food porn para a pessoa ficar ali mesmo presa ao ecrã e, de alguma forma, conseguir viajar pelo mundo através da gastronomia”.