As vidas incompletas

Já aqui contei antes que o meu pai só me deixou usar calças quando fui para o ciclo. Uma alegria essas calças azuis de bombazine que me amaciaram a vida apesar da aspereza do meu pai.

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"Quando o meu pai decidiu construir uma casa, a visão de qualquer sonho ficou ainda mais estreita" Mag Rodrigues

Basta olhar para o meu passado para perceber como o país mudou. Mudou muito mesmo com algumas mentalidades a persistirem no erro de querer trazer de volta uma certa forma de viver.

Já aqui contei antes que o meu pai só me deixou usar calças quando fui para o ciclo. Uma alegria essas calças azuis de bombazine que me amaciaram a vida apesar da aspereza do meu pai.

A minha mãe demorou décadas a decidir usar calças. Esse país (pais incluídos) era mais triste. As pessoas cingiam-se a um molde apertado nunca admitindo transbordar os limites. Nem imagino se seria algo que lhes passasse pela cabeça: temo que o risco nem fosse equacionado. Sendo que o risco é muitas vezes o sonho. E num país onde não se sonha, a tristeza impera.

Lutei muito pelas minhas pequenas conquistas. Pela forma como me aproximei dos amigos que me fariam depois sonhar. Antes disso saí derrotada muitas vezes sem a hipótese de me deter na fantasia. Qualquer que ela fosse.

Quando o meu pai decidiu construir uma casa, a visão de qualquer sonho ficou ainda mais estreita. Poupávamos em tudo o que não fosse comida e, mesmo na comida, não havia grandes ousadias. Nem guloseimas, nem refrigerantes, nem nada que fosse supérfluo. Para ser justa com esse passado devo confessar que quando ficava doente tinha direito a um Sumol de laranja. Era um acontecimento. Uma espécie de conforto que saciava a febre e o desconforto de perceber que tinha fraquejado outra vez. Ou as minhas defesas por mim. Agora penso que fiquei muitas vezes doente como quem namora a tristeza. Ambas confundem-se.

A minha mãe mandava fazer as nossas roupas à costureira ali perto da nova casa. Entrámos pelo campo adentro deixando a praia que nos recebeu quando chegámos de Lisboa para viver outra vida. A praia e o pinhal tinham a abertura e expansão que o mar permite. O campo pode asfixiar.

As mulheres embrutecidas passavam velozes guiando os tractores dos seus pais. Muitas ficaram para sempre assim. Sem serem resgatadas por um olhar de sedução. Viviam para o campo e nele acabaram. Lembro-me de um cheiro ácido que pairava no ar entre o estrume e os adubos. Essas mulheres arranjavam-se ao domingo para ir à missa. As mãos tinham lanhos como se fossem vasos partidos e colados. O cabelo era puxado para trás, preso num puxo com uma travessa às vezes com os dentes partidos. Eram as travessas, os pentes, a boca e os ancinhos. Dentes por reparar que ficavam assim muitos anos. A vida toda. E as mãos (ainda hoje vejo essas mãos) que nenhum creme amaciava ou mão alguma tocava. Há gente ali que nunca conheceu o toque. Quase me comovo por pensar nessas vidas incompletas. Nenhuma vida se faz inteira se não se soube o que era o carinho.

A Dona Clarinda era a costureira. Tinha tecidos bonitos, uns fortes, outros lustrosos que o marido trazia da fábrica onde trabalhava. Eu e a minha mãe saíamos para escolher os tecidos e depois eu ficava uma semana a idealizar a saia que queria ou o casaco que posso ter visto na televisão ou numa rara revista que me ia parar às mãos. Quando a Dona Clarinda telefonava para o fixo a avisar que a roupa estava pronta, eu ia a correr busca-la e, depois, ficava ali a ver o que tinha falhado. Falhava quase sempre alguma coisa. Eram as golas, as casas dos botões, a bainha a pesar no tecido. Eram muitas coisas que me derrubavam a hipótese de me sentir mais enquadrada.

Lembro-me com nitidez de um fato que idealizei composto por um blusão e uma saia de pregas em xadrez verde e castanho que me parecia garantir uma mudança de vida, mas depois quando corri para o ver, lá estava a gola assimétrica, as casas que não casavam, a saia com demasiado tecido. Parecia sempre que ia ser dessa vez, a vez certa, mas depois o sonho acabava ali. E pior: não havendo dinheiro ou alternativas, eu tinha de andar vestida com a roupa que parecia inacabada. A roupa estava pronta, o sonho é que permanecia incompleto.

Quando aos 16 anos comecei a trabalhar e a ganhar o meu dinheiro concretizei praticamente tudo o que me ocupava a cabeça. Já não havia Sumois de laranja (porque não ficava doente) mas o trabalho configurou-me os sonhos quase todos.

O país mudou tanto mas ainda sonho para concretizar.

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