Um dia destes

Um dia destes, peço-te em casamento, Rute. Até já sei qual é o anel, que passei por ele noutro dia numa montra. Pensei logo: “A Rute vai ficar linda com ele.”

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Louis Hansel/Unsplash

Um dia destes, Rute, fazemo-nos à estrada. Deixamos os miúdos com os teus pais e seguimos, só os dois, para descansarmos e termos tempo para nós. Também merecemos, caramba! Pegamos na carrinha e conduzimos rumo ao Norte, para bebermos bom vinho e enchermos o bandulho. Vamos recordar os tempos de namoro. Podemos fazer uma paragem para dormir em casa da minha mãe em Moimenta da Beira, ela faz-nos o cozido divinal dela e aviamos caminho muito mais satisfeitos. Vamos às termas descansar, pôr-nos de molho e aproveitar o silêncio sem as crianças.

Um dia destes, Rute, arranjamos uma casa com quintal. Vai ser muito melhor para as crianças e os cães correrem. Podemos ter o nosso próprio limoeiro, fazer crescer as hortaliças para as nossas sopas. Podes não acreditar, mas vejo-me com jeito para a jardinagem.

Um dia destes, Rute, temos um filho. Vais ficar linda, grávida, vou fartar-me de dar festinhas e de falar com a barriga, ouvi dizer que se deve fazer isso, é esquisito, eu sei, são aquelas modernices que não se percebem bem, mas eu por ti e pela nossa família faço tudo. Vou ser um pai babado, Rute. Não se deve ter preferência, mas eu acho que gostava mais de ter uma menina linda como a mãe. E por mim chamávamos-lhe Rute, que é o meu nome preferido, só porque é o teu nome.

Um dia destes, casamos. Não perdes pela demora, Rute, vai valer tudo a pena, só para te ver entrar na igreja de braço dado com o teu pai. Vou conter as lágrimas quando cruzares o olhar comigo, por baixo do véu. Eu não levo jeito com as palavras, mas já estou a pensar no que vou dizer e tudo. Vou fazer um discurso para ti, Rute. E depois vamos dar uma festa de arromba com porco no espeto e espumante, e dançar noite fora.

Um dia destes, peço-te em casamento, Rute. Até já sei qual é o anel, que passei por ele noutro dia numa montra. Pensei logo: “A Rute vai ficar linda com ele.” Acho que tem uma pedra de esmeralda, mas não percebo muito disso. Hás-de depois dizer-me.

Um dia destes, Rute, fazemos as pazes. Tu vais pedir desculpa e dizer que te exaltaste a falar da minha mãe, eu vou pedir desculpa por ter gritado, vou admitir que já tinha um copito ou dois em cima, vamos chorar abraçados e dizer que nos amamos muito.

Um dia destes, Rute, vamos discutir. Vais dizer que a minha mãe é metediça, eu vou enervar-me, vou falar-te mal e chamar-te um nome ou outro com os nervos e com o álcool todo que me subiu à cabeça.

Um dia destes, Rute, vamos namorar para o cinema. Pedimos um balde de pipocas e damos umas beijocas com sabor a milho. E depois podemos ir ao Bingo, a ver se temos sorte no jogo, tanta como no amor.

Um dia destes, vamos passear de mão dada para a Baixa e conversar sobre as nossas vidas. Não costumo abrir-me muito, mas vou contar-te da minha infância, das zangas com os meus irmãos, de tudo o que passei na tropa. E quero ouvir-te falar de ti, dos teus sonhos e do que te aflige.

Um dia destes, Rute, espeto-te um beijo. Escreve o que te digo. Só para te ver corar já vai compensar.

Um dia destes, ganho coragem e vou falar contigo.

Um dia destes, Rute, pergunto-te o nome. E faço um ar muito espantado quando disseres: “Rute”. Vou fingir que não sabia, que não penso em ti de manhã à noite, e que não ouvi o teu marido ou companheiro ou lá o que é chamar-te isso aqui no outro dia no café. Não sou de intrigas, mas é um malcriado. Ainda por cima é lagarto. Fez para cá uma algazarra no dia do jogo. Olha que conseguias melhor. Não quero ser convencido, sou um tipo modesto, mas alguém assim como eu assentava-te melhor. Mas um dia destes, digo-te. Escreve o que te digo. Um dia destes.

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