Igreja espanhola abre investigação a 251 membros do clero acusados de abusos a menores
Denúncias foram reunidas pelo jornal El País, que as fez chegar ao Papa e aos bispos espanhóis. Em três anos, o diário já recebeu informação sobre 600 casos, envolvendo potencialmente milhares de vítimas.
Qualquer indício plausível de suspeitas de pedofilia no interior da Igreja Católica que actualmente chegue ao Vaticano implica a abertura quase automática de uma investigação. Foi o que aconteceu agora, depois de o jornal El País entregar ao Papa Francisco um relatório de 385 páginas, a 2 de Dezembro, aproveitando o contacto directo com os jornalistas durante a sua viagem à Grécia. No documento detalham-se acusações de abusos de menores a 251 membros do clero que o diário reuniu e investigou nos últimos três anos.
Na semana seguinte à viagem à Grécia, o dossier já estava em posse da Congregação para a Doutrina da Fé, a instituição que centraliza as investigações de pedofilia no mundo católico. Em simultâneo, o jornal entregou o seu estudo ao presidente da Conferência Episcopal Espanhola, o cardeal Juan José Omella, arcebispo de Barcelona, que o fez chegar ao tribunal eclesiástico de Barcelona: as investigações devem agora ramificar-se de acordo com as entidades competentes, envolvendo 31 ordens religiosas em 31 dioceses diferentes.
Matteo Bruni, porta-voz do Vaticano, confirmou, num comunicado, que o Papa recebeu a documentação e a fez chegar aos “órgãos competentes para que pudesse ser processada de acordo com a lei actual da Igreja”, referindo-se à Conferência Episcopal Espanhola e à Congregação da Doutrina da Fé. De acordo com a lei da Igreja, os bispos espanhóis teriam de informar as autoridades civis sobre as suspeitas.
Pertence ao El País o único registo existente em Espanha de casos de pedofilia na Igreja, um projecto lançado pelo jornal perante a ausência de dados oficiais da Igreja ou das autoridades. Todas as acusações incluídas no documento transmitido ao Vaticano são inéditas, com excepção de 13 em que há novas denúncias nunca publicadas.
O caso mais antigo é de 1943 e o mais recente de 2018. No conjunto do registo do diário contam-se pelo menos 602 casos (cada um corresponde a um acusado) e 1237 vítimas (só contabilizadas quando há depoimentos directos dos afectados e testemunhas) desde os anos 1930.
Mas, nota o jornal, na maioria das situações fala-se de religiosos que abusavam de dezenas de crianças e de comportamentos que eram um “segredo aberto” — frequentemente, os casos envolvem professores que agrediam sexualmente toda uma turma e que estiveram durante anos em várias escolas. As estimativas que têm sido usadas por peritos em estudos de comissões independentes em vários países elevaria este número a vários milhares, sublinha o El País.
A Conferência Episcopal Espanhola tem repetido que não sabe quantos abusos aconteceram no país, garantindo que são “muito poucos”. Sem abrir uma investigação geral, pede às vítimas que se dirijam aos seus escritórios, abertos há um ano, mas afirma que praticamente não registou denúncias. Já o El País recebeu mais de 600 mensagens no endereço de email que abriu para este fim há três anos, tendo já escrito sobre muitos casos e continuando a investigar os restantes.
Vaticano supervisiona
Depois de terem em mãos o dossier do El País, Francisco e Omella conversaram. Agora, como acontece habitualmente quando as denúncias são múltiplas e envolvem várias ordens, dioceses ou abusadores, a investigação da Conferência Episcopal Espanhola será supervisionada pela Congregação para a Doutrina da Fé. De acordo com as suas próprias regras, o Vaticano vai exigir resultados num máximo de três meses. As principais congregações, informadas igualmente pelo diário espanhol, abriram as suas investigações.
A maioria das entidades reagiu com pedidos de desculpa e condenações fortes. “Condenamos estes factos terríveis e pedimos perdão às vítimas por não termos sido capazes de as proteger, de cuidar delas e por não termos gerido de forma adequada estas situações”, reagiram os maristas, que acumulam vários casos. Apesar da reacção mais comum, também houve tentativas de desvalorizar as acusações. Um responsável dos vicentinos de Saragoça, por exemplo, respondeu assim ao ser confrontado com os casos que envolvem a ordem: “Não investigaremos. Nunca ouvimos dizer nada de mal sobre esta pessoa. Não me interessa o tema. Isto é sujo”.
A Igreja Católica portuguesa anunciou em Novembro a criação de uma comissão nacional, sobre a sua alçada, para promover um “apuramento histórico” dos casos de abuso sexual cometidos por membros do clero nacional. Para liderar a comissão foi escolhido o médico de psiquiatria da infância e da adolescência Pedro Strecht.
Em Novembro, o Papa, que se tem encontrado com dezenas de vítimas de abusos, agradeceu aos jornalistas por ajudarem a descobrir os escândalos de abusos sexuais de membros do clero.