Os “aceitacionistas acéfalos” e a Ómicron
João Miguel Tavares escreve um artigo que é um insulto à ciência, a quem faz e quem dela precisa, ou seja, todos nós.
Na minha humilde opinião, o maior desafio do século XXI será o respeito pela ciência. E digo-o, porque a luta contra as alterações climáticas vai pôr em causa a felicidade e o conforto de muita gente, e, tal como aquilo a que estamos a assistir durante a pandemia, há uma tentação por reflexo de, quando confrontados com um caminho que nos entristece, permitir que a crença no inverosímil dispare. Assim é a história da humanidade. A verdade fica para segundo plano, quando a mentira nos conforta.
João Miguel Tavares (J.M.T.) escreve um artigo que é um insulto à ciência, a quem faz e quem dela precisa, ou seja, todos nós. Há quem defenda o direito ao insulto, e eu não sei bem discutir isso, mas sei que, ao insultarmos a ciência, estamos a pôr as leis fundamentais da nossa existência ao abrigo de “opiniões”. Nunca precisámos tanto das autoridades de saúde e nunca estas foram tão maltratadas na opinião pública, à boa maneira de Donald Trump, que tanto fez chacota da Organização Mundial da Saúde (OMS) como recomendou lixívia para tratar a covid-19. Ao pôr os “negacionistas” — da doença, da vacina, da gravidade da doença, etc. — e os “aceitacionistas acéfalos” nos mesmo pratos da balança, J.M.T. está a legitimar um debate que não existe, nem pode existir. A isto chama-se “viés do equilíbrio”: não se põe o criminoso e o juiz a debater ideias, pelo menos na minha concepção de Justiça. A ideia de pôr a senhora do megafone e a dra. Graça Freitas em debate seria medieval.
As autoridades de saúde assim se chamam, porque recolhem os pareceres das pessoas que reúnem a seriedade e a competência para o efeito. O professor Luís Graça, um dos responsáveis pelo parecer da vacinação de crianças, foi alvo de insultos e ameaças bem reais, porque há pessoas que não reconhecem as premissas de seriedade e competência. E o que mais me impressiona é a capacidade de alguns de pensarem que a Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla inglesa), que regula todos os medicamentos que eu uso enquanto médico e tomo enquanto doente, desta vez esteja movida por interesses obscurantistas para, por exemplo, aprovar e recomendar a vacinação dos 5 aos 11 anos.
Ser “aceitacionista acéfalo” é acreditar na comunidade científica nacional, europeia, internacional? Se sim, é uma afirmação muito grave, porque normaliza a radicalização das opiniões que levam a insultos, ameaças, e a largas franjas de não-vacinados, como vemos em alguns países, exactamente porque confabulam sobre a seriedade e competência das autoridades de saúde que sempre zelaram por todos nós. Se tem de haver debate? Claro que sim, mas por quem de direito, em sede própria. Ou vamos discutir na opinião pública como é que se faz uma ponte ou constrói um foguetão? Eu sou um “aceitacionista acéfalo” e sobre assuntos que nada sei acredito nas pessoas legitimamente acreditadas para tal. O contrário disto acaba sempre numa conspiração.
Porque é que isto é perigoso? Porque ainda há muito caminho para andar que depende do nosso “aceitacionismo acéfalo”, para que a saúde das pessoas, e indirectamente os prejuízos sociais e económicos sejam mitigados. Também J.M.T. diz que a Ómicron afinal foi falso alarme. Talvez influenciado pelo facto de que agora está fora de moda admitir-se que há sinais de preocupação, alguns fazedores de opinião de ciência vieram relativizar a variante Ómicron. Eu, como sou um “aceitacionista acéfalo”, continuei a ouvir as diferentes autoridades de saúde sobre o assunto, até porque, sendo eu médico, tenho a humildade de ouvir os peritos sobre as áreas da medicina que não domino.
O facto de ser menos mortal, ainda por comprovar, não evita que seja um problema, porque a maior transmissibilidade, esta, sim, já provada, e a propensão para reinfeção quer em imunizados pela vacina, pelo vírus, ou pelos dois fazem com que existam preocupações legítimas sobre o potencial de grande pressão hospitalar nos meses que se avizinham. E isto é ciência, não é uma bola de cristal. Menor mortalidade, mas maior transmissibilidade pode ser muito pior que o contrário, em termos daquilo que mais nos preocupa: a capacidade de os hospitais e centros de saúde darem resposta a todas as patologias urgentes e não urgentes.
A variante Ómicron está a duplicar-se em dois a três dias em alguns países, e no nosso será igual. Alinharam-se os astros para a pior mistura possível: festas natalícias, eleições e uma variante que é uma preocupação, o que me faz prever uma campanha eleitoral inevitável e ferozmente contaminada pela pandemia, e a única forma de não tornar a pandemia uma arma de arremesso político é compreender que o negacionismo/relativismo/obscurantismo é um cancro que mata, e que em matéria de ciência não há vergonha nenhuma em ser um “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades de que vamos precisar, para compreender que a forma de nos protegermos das consequências de saúde, e, por inerência sociais e económicas, é avançar rapidamente para toda a população adulta com a terceira dose da vacina, porque é isso que a comunidade científica nos está a dizer, para melhor nos protegermos da Ómicron.
O máximo de respeito e admiração por J.M.T., como comentador político, mas parece-me que desta vez não teve a humildade que deveria acompanhar a sua inteligência. Não politizem a ciência, pela nossa saúde.