Mãe é mãe
Deu-me uma das mais importantes e mais difíceis coisas que se pode dar a um filho: a liberdade. Principalmente a liberdade para eu ser quem eu era. Sempre disse “vai”, um verbo árduo de ser conjugado por uma mãe.
Hoje fazemos anos. Sempre foi assim. Ou melhor, sempre para mim. Para a minha mãe houve um tempo distante e inverosímil, como nos parecem os períodos da vida dos pais que antecedem o nosso nascimento, em que ela fazia anos sozinha. Sozinha salvo seja, que a minha mãe sozinha não costuma estar, tem sempre amigas à roda, quer ao vivo, quer entre o ouvido e o ombro, no telemóvel, enquanto faz alguma coisa. Mas houve um tempo em que este dia era só seu. No almoço em que fez 35 anos percebeu que eu queria juntar-me à festa. Cheguei antes do previsto. A primeira e talvez a única vez que o fiz. Costuma dizer-me que eu fui o melhor presente que recebeu, o que é querido, mas, também, óbvio, sendo filha única, ficaria ofendida se tivesse preferido um faqueiro ou uma máquina de fazer pão. Desde aí, celebramos juntas. Há 28 anos que 14 de Dezembro é o nosso dia.
Sei que a minha mãe sonhava com uma filha para encher de laços e fitas, enfiar mocassins e vestidos, fazer toilettes impecáveis. Calhou-lhe uma pequena selvagem que nunca compreendeu bem a necessidade de usar sapatos e que acabava todos os casamentos descalça e enrolada na lama com os cães. Mas ela deixava-me estar. Não tentou moldar-me, nunca se desalentou com o meu pouco entusiasmo pelas bonecas e pelo meu interesse precoce pela escalada de árvores ou por tudo o que trazia rodas e a promessa de um joelho esfolado. Pelo contrário, gostava. Do alto dos seus saltos agulha que jamais ousaram aproximar-se de um skate, admirava esta filha, não por ser feita à sua imagem e semelhança, mas precisamente pela beleza que sempre foi capaz de encontrar na autenticidade.
Um dia, enquanto a minha mãe maquilhava as minhas amigas, eu fui timidamente pedir-lhe um pouco de sombra e vi acender-se na sua cara a esperança de que eu me tivesse finalmente convertido às magias do embelezamento feminino, esperança essa que foi em segundos aniquilada, quando percebeu que a minha ideia era fazer uma marca à volta do olho como se tivesse levado um murro na cara, para fazer uma peça de teatro.
Deu-me uma das mais importantes e mais difíceis coisas que se pode dar a um filho: a liberdade. Principalmente a liberdade para eu ser quem eu era. Sempre disse “vai”, um verbo árduo de ser conjugado por uma mãe. E teve a magnitude de compreender que houve momentos em que eu precisei de estar longe dela para estar perto de mim. Entendo agora o quanto isso deve ter-lhe custado. Eu ia e, por saber que podia ir, sempre quis voltar.
Como boa sagitária, meteu-se em mil cursos, actividades e formações, de entre os quais o de astrologia, cujo gosto me passou logo na mais tenra infância. Eu pegava nos seus papéis dos mapas astrais e coloria como se fossem mandalas, aprendi a desenhar os signos antes de saber escrever e, quando conhecia alguém, a primeira pergunta que lhe fazia era: “Qual é o teu ascendente?”, espantando-me tanto quando não sabiam como se não soubessem o seu nome. Anos mais tarde, na atitude típica de desafio à mãe, gozava com a astrologia, arremessando-lhe, do alto da minha puberdade irritante, a pior coisa que se pode atirar a quem se interessa por esoterismo: “A ciência.” Tudo isto porque era uma adolescente típica. E porque tenho o ascendente em Leão.
Ainda não se inventou um termo que sirva para representar as nuances da relação entre mães e filhos. Eu proponho “umbiguidade”. Porque o umbigo materializa bem a complexidade desta ligação: por um lado é a prova do corte de um vínculo, por outro, uma marca que nos acompanhará para sempre e a prova de que o vínculo jamais será apagado.
Uma vez, disse-lhe: “A mãe é a minha melhor amiga.” Ela tratou de corrigir-me: “Não sou tua amiga. Sou tua mãe.” Fiquei desolada, mas agora compreendo. Mãe não é amiga, mãe é mãe. A frase que repetimos infinitamente e cujo significado escusa mais elaborações.
Mãe é mãe e a minha é linda, inteligente e trabalhadora. A minha mãe chora sempre no fim do Verão, chora a ouvir fados, chora com saudades de quem partiu, chora quando não se lembra da password do Facebook. A minha mãe tem choro fácil, quase tão fácil como o seu riso. Não é de esconder o que sente, é dos afectos. A minha mãe liga-me a dizer: “Fiz reiki à Sofia e já não está a tossir.” Vê-la ser a avó maravilhosa que é dá-me a mim vontade de chorar. A minha mãe toma banhos de imersão enquanto lê e fuma. É dona do seu tempo. E tem tempo para todos, especialmente se for para ajudar.
Às vezes reparo, constrangida, que ela me está a observar com o seu olhar de mãe. E ainda hoje acontece sentir o seu empurrão (nada) discreto nas costas: “Diz olá à tia”, num medo ou talvez desejo de que eu ainda seja a pequena selvagem de cinco anos. E eu: “Mãeeee”, como quem diz: “Tenho 28 anos”, mas como quem comprova que nada é mais difícil do que ser adulto ao pé de uma mãe.
A vaidade acabou por atingir-me violenta e inesperadamente com o advento dos saltos altos e do rímel na minha vida. Imitei-a em quase tudo. Na paixão pelos banhos de mar com ondas, pelas festas, pelos livros e pelas músicas do Vinicius de Moraes. Na capacidade de escrever bem e também na propensão para o auto-elogio disfarçado, como este. Copiei também coisas menos boas, como aliás a irritação com a expressão “menos boas” quando se quer dizer más. E a embirração com tantas outras expressões, das quais talvez sobressaia: “A continuação” usada como forma de despedida, com todas as suas variações, como: “A continuação de bom proveito” que tantas vezes dizemos uma à outra por brincadeira.
Partilhamos, mais do que o dia em que chegámos ao mundo, a forma como nele actuamos. A incapacidade de chegar a horas aos sítios, a desorganização, a mania que somos chiques. As poucas habilidades para a condução. A mania de cantar mesmo sem saber cantar. E sei que agora ela está a dizer que sabe cantar muito bem. E que eu também sei cantar muito bem. Sou-lhe grata por sempre ter conseguido detectar melodia na minha desafinação.
Houve um tempo em que eu andava zangada com a minha mãe e retraía-me aos seus beijinhos e abraços. Ela ficava triste, a achar que eu não gostava dela quando, na verdade, a única coisa que eu queria, era que ela gostasse tanto de si própria quanto eu gostava. Pede-me desculpa por um período que não hesitaríamos em apagar. Talvez não saiba que terei sempre muito mais a agradecer-lhe do que a perdoar-lhe.
Ensinou-me a aproveitar o melhor da vida. Como a música do Vinicius que cantávamos as duas no carro a caminho da praia: “A coisa mais divina que há no mundo é viver cada segundo como nunca mais.” A maior lição que levo dela é essa. Aproveitar. E ainda temos muito para aproveitar. Não herdei o seu jeito para despedidas afectuosas, por isso só posso desejar-lhe, do fundo do coração, a continuação de bom proveito.