110 Histórias, 110 Objectos: o Solidariedade Estudantil
O podcast 110 Histórias, 110 Objectos, do Instituto Superior Técnico, é um dos parceiros da Rede PÚBLICO.
No podcast 110 Histórias, 110 Objectos, um dos parceiros da Rede PÚBLICO, percorremos os 110 anos de história do Instituto Superior Técnico (IST) através dos seus objectos do passado, do presente e do futuro. Neste 22.º episódio do podcast, conhecemos a história do boletim Solidariedade Estudantil.
Na manhã de 26 de Novembro de 1967, Portugal acordava com um rastro de lama e destruição, depois de intensas horas de chuva, em particular na zona da Grande Lisboa. As cheias de 1967 perfilavam-se como um dos maiores desastres em Portugal depois do terramoto de 1755 e punham a nu muitas das fragilidades de um país ainda enclausurado no regime salazarista. 462 mortos na contagem oficial do regime, que cedo suspendeu a contagem. Pelo menos 700 de acordo com alguns historiadores. Como reacção à tragédia, e estimulados pela Juventude Católica Portuguesa (JUC), os estudantes do IST responderam ao desafio lançado pela Associação dos Estudantes do Técnico, lançaram-se numa memorável campanha de solidariedade e apoio à população, em particular na zona da Vala do Carregado.
A força estudantil, traduzida num apoio a tarefas como limpeza de casa, distribuição de alimentação, transporte de pessoas que precisavam de assistência médica e até de vacinação, ganhou também expressão na frente da informação. Perante um cenário de grande controlo do regime, o boletim Solidariedade Estudantil, distribuído no IST com uma tiragem que atingia os dez mil exemplares e escrito por estudantes que participavam no processo de voluntariado, era dos poucos que escapava à censura do Estado Novo.
“Poder ler uma imprensa livre, para quem tinha a consciência que a imprensa que existia no país sofria os efeitos da censura, cria uma relação de quem lê com o que está escrito completamente diferente. Dizem outras coisas, de outra maneira, falam de uma maneira nova e o IST – a Associação dos Estudantes do Técnico – tinha muita preocupação em distribuir a sua informação e fazer grandes tiragens para difundir, para mostrar o que é que os estudantes estavam a fazer. Nas suas publicações escreviam e punham notícias sobre greves (clandestinas, porque não havia o direito à grave), ou movimentações. Havia uma relação entre os estudantes e a sociedade e que esses órgãos de imprensa as diziam porque não estavam sujeitos à censura”. O contexto é feito por Luísa Tiago de Oliveira, do departamento de História do ISCTE, que estudou o activismo estudantil do IST entre 1945 e 1980.
Da escrita do boletim, que durou menos de um ano, surgem nomes como os de Diana Andringa, que viria a trocar o curso de medicina pelo jornalismo, Jorge Simões e João Crisóstomo. “Eles faziam o relato de tudo o que se tinha passado durante as cheias”, recorda José Pires Brazão, antigo estudante do IST e membro da Associação dos Estudantes na época. “Marcou uma época. Havia jornais estrangeiros que citavam o Solidariedade Estudantil”, recorda.
“Como se sabia que havia muita gente morta em Quintas, toda a gente queria ir para lá. Mas o presidente da Câmara dessa altura de Vila Franca de Xira disse que não valia a pena, não havia lá nada a fazer, ou muito pouco”. Sugeriu a Vala do Carregado, uma região altamente sinistrada, que estava sem resposta. “Quando lá chegámos aquilo era um horror, casas destruídas, tudo inundado. E então eu estive aí três dias e quase noites”, recorda José Brazão, cuja foto também surge nas páginas do Solidariedade Estudantil a carregar uma mulher idosa.
Os estudantes chegaram em autocarros alugados pela Associação do Técnico, que usavam também para distribuir comida. A PIDE estava por todo o lado mas pouco ou nada o regime poderia fazer. “Eles tinham os bombeiros, que não estavam preparados para uma desgraça com tal dimensão, e eu acho que eles foram apanhados de surpresa. Nunca pensaram que os estudantes de Lisboa iniciassem o apoio às vítimas das cheias. E pensavam que aquilo seria algo que eles poderiam controlar, à força se fosse necessário ou pensavam que os estudantes se iam cansar e não prosseguir esta actividade. Portanto, eles deixaram-nos entrar. Acho que isso foi o grande erro deles”, aponta.
O cenário que encontraram: As casas todas inundadas, camas destruídas, idosos com água até ao joelho; a chuva tinha sido de tal forma forte que “limpou tudo”, um metro e meio de lama, lama por todo o lado. Na Vala do Carregado não havia vítimas mortais, mas o volume de pessoas em situações médicas graves era significativo e a destruição estava por todo o lado. “Era preciso ajudar aquela gente, e limpar. E fomos buscar pás, com os poucos instrumentos que havia. Depois os agricultores emprestavam-nos as enxadas e as pás e os baldes para tirar aquela lama toda. Limpar as casas, limpar as ruas, ajudar as pessoas a lavar os pratos, a lavar as camas, a por as camas fora para secarem, porque aquilo era uma miséria completa. Ali vivia-se muito mal. Eram situações de urbanismo sem a mais pequena planificação. Muita gente vivia em estilo bairro de lata”, descreve.“As pessoas estavam tristes e desesperadas, não sabiam o que fazer. Havia gente que não comia há dois dias”.
Os estudantes do IST, de resto, assumiram a logística no apoio aos sinistrados na Vala do Carregado. “Nós fechámos a entrada da Vala do Carregado. Havia dois estudantes que controlavam as saídas e entradas. No Governo salazarista, controlávamos a entrada com um cordel”, recorda.
As cheias representaram também, na opinião de Luísa Tiago de Oliveira, uma viragem na atenção que os movimentos estudantis davam ao país. Passou a prestar-se atenção ao “Portugal da lama, o Portugal do lixo, o Portugal da pobreza, o Portugal da miséria”. “Nessa altura, origem dos estudantes era das classes alta ou média-alta e, portanto, muita gente não conhecia a realidade popular de então. Se antes havia muitas reivindicações que podiam ser sobre alimentação, cantina, liberdade na associação ou o direito a celebrar o dia dos estudantes, as reivindicações tornam-se mais sociais em termos gerais e politicamente mais interventivos pondo em causa o sistema depois de 1967. Ficou uma politização muito maior, uma abertura para a sociedade e um interesse maior nas ciências sociais. E uma maior frontalidade à crítica à guerra colonial”, defende.
“Eu acho que, até às cheias, o Governo não tinha receio nenhum das universidades em Lisboa. As cheias são o momento determinante que faz dar o salto para outras actividades”, concorda José Brazão. “Quando terminámos o trabalho na Vala do Carregado, fomos convidados a beber com a população. Ainda me lembro de irem abrir o barril de uma aguardente velha e deram o copo a cada um de nós que lá estava. As pessoas gostaram do papel dos estudantes. Toda a gente queria ir para a Vala do Carregado. Fizemos campanhas de vacinação. Consultas médicas para pessoas que estavam doentes. A Faculdade de Medicina mandou para lá jovens médicos e finalistas de medicina. Juntou-se ali uma série de pessoas que mais tarde evoluem. Aí dá-se o salto qualitativo do movimento estudantil para aquilo que foi até 1974”, complementa.
O podcast 110 Histórias, 110 Objectos é um dos parceiros da Rede PÚBLICO. É um programa do Instituto Superior Técnico com realização de Marco António (366 ideias) e colaboração da equipa do IST composta por Filipa Soares, Sílvio Mendes, Débora Rodrigues, Patrícia Guerreiro, Leandro Contreras, Pedro Garvão Pereira e Joana Lobo Antunes.
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