“Pilar... encontramo-nos noutro sítio”

“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, disse José ao referir-se ao avô aquando da entrega do prémio Nobel de Literatura. Agora é a nossa vez.

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José Saramago Nuno Ferreira Santos

Diz José, os braços cruzados, Lanzarote ainda a fumegar como pano de fundo, Timanfaya para ser mais preciso e o basalto a perder de vista, negro como o horizonte, tão desolador e surreal, tão surreal e belo, o princípio e o fim. E por isso Timanfaya. Já lá estivemos, José. E, por tua causa, quisemos lá ficar. Na tua casa, modesta, na tua biblioteca, imensa.

José Saramago, só, de braços cruzados para a câmara também só, diz “Pilar”, faz uma pausa e enquanto faz uma pausa procura as palavras, as palavras que apesar de ainda desconhecer serão tão pragmáticas como a vida, a vida que sempre quis e levou: “encontramo-nos noutro sítio”.

A certeza das suas palavras rebentam já de saudade e estes olhos não podem deixar de marejar, mesmo que por um segundo e por um segundo os pêlos destes braços em pé. Por ser verdade. Porque José já cá não está, apesar de ainda estar, pelo menos em película, pelo menos por duas horas, o tempo de te vermos outra vez no ecrã, findo o qual teremos de dizer adeus outra vez. Todos nós, os órfãos.

Esta mensagem, apesar de ainda distante da morte, ainda não era a hora, a hora ainda não chegara, não é apenas o consumar dos factos, é o amor no meio da resignação, tudo o que começa, um dia acaba e José já há muito que conta os dias, subir a montanha é cada vez mais difícil, para não dizer uma autêntica façanha, e é preciso deixar algo para a posteridade passível de ser repetido vezes sem conta.

Um legado, mas também a esperança de “outro sítio”, não este que este chega agora ao fim mas “outro, outro que ninguém ousa sonhar.

José Saramago peremptório: “A história dos homens é a história do seu não encontro com Deus. Ele não nos compreende e nós não O compreendemos.” José Saramago à frente do seu tempo, ou talvez não, talvez Portugal atrás do seu tempo, mesquinho e pequeno quando, nos anos 90, o Governo vigente veta a candidatura da obra O Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prémio Literário Europeu.

A justificação? A obra atentava contra a moral cristã. Parece de outro mundo, mas não é. E, no entanto, à data não era possível granjear amizades ao afirmar-se ser a nossa História um desencontro com Deus.

Miguel Torga contava, a páginas tantas, ter sido preso pela PIDE. A caminho da prisão, pergunta-lhe um colega de cárcere o porquê da sua detenção. Resposta: “Escrevi um livro”. Contra-resposta: Ui, isso é que não!” Porque, nestas circunstâncias, matar um homem ainda equivale a uma pena e a luz do Sol à nossa espera um dia destes. Agora, escrever um livro… como é que se tiram as ideias da cabeça de um escritor? Escrever um livro é que não!

Por conseguinte, José Saramago escreveu livros. José Saramago desassossegou e desassossega. Basta ler o Ensaio sobre a Cegueira ou a certeza de como a violência de que somos feitos é capaz de nos deixar enjoados à custa de apenas ler palavras.

Palavras. Suscitam todo o tipo de emoções, reacções, amor e ódio, concórdia, guerras fratricidas, empatia, espanto, saudade, raiva e, não obstante, são apenas palavras. Se não as aceitamos, tal não é culpa de quem as escreve quando quem as escreve é José Saramago e José Saramago não é senão um fiel servo das palavras.

As mesmas palavras que um dia feriram um país. As mesmas palavras que catapultaram Saramago para o Olimpo, não dos escritores, mas da Humanidade. Saramago nas estrelas. Quanto aos vencidos e aos carcereiros, os que lutaram contra a sua obra, do seu nome não reza a História e aqui coibimo-nos de os reproduzir.

As consequências, não obstante inevitáveis, levaram um José magoado a procurar residência noutro país, noutra ilha. Portugal ainda hoje está em falta e Espanha agradece. A Europa agradece. Basta atravessar a fronteira para entrar na Europa e José assim o fez e fez de Lanzarote a sua casa.

José Saramago contemporâneo. Face a face com o aquecimento global, ao qual José foi poupado, é impossível não deixar de repetir até à exaustão as suas palavras: “Vemos o abismo, está aí diante dos olhos, e contudo avançamos para ele como uma multidão de lemingues suicidas com a capital diferença de que de caminho nos vamos entretendo a trucidar-nos uns aos outros”. Fatalismo? Pessimismo? Mais um velho do Restelo com todo o tempo do mundo para se queixar da vida? Ou a verdade nua, pura, dura, crua? A verdade à nossa frente desde sempre, a verdade negada a pés juntos em nome da ganância e da soberba e o resultado à vista com a água pelos joelhos.

José Saramago enamorado. Conta José sobre Pilar: “Ela telefonou-me e anunciou-se, ‘Sou Pilar del Rio, sou jornalista, sou uma grande fã sua e como vou a Lisboa’ e foi assim, não havia nenhuma entrevista nem houve. E quando ela aparece e eu não sabia que era ela, ela vem na minha direcção e eu pensei, ui, isto é outra coisa” e outra coisa foi uma história de amor de 24 anos até à morte de Saramago em 2010.

“O que é que queres que eu faça?”, perguntou Pilar a José. E José, com a resposta pronta na ponta da língua, disse: “Continuar-me”.

E José continua em cada uma das suas obras, nos actos, conversas e pensamentos dos personagens, nas suas palavras, nas suas lutas. E José continua diante da Fundação com o seu nome, as suas cinzas depositadas aos pés de uma oliveira centenária, transplantada da aldeia natal, Azinhaga do Ribatejo. A mesma aldeia onde José viu o avô Jerónimo despedir-se do mundo em pranto enquanto abraçava cada uma das árvores do seu quintal.

“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, disse José ao referir-se ao avô aquando da entrega do prémio Nobel de Literatura. O mesmo avô Jerónimo que, apesar de analfabeto, punha o universo a girar com duas palavras apenas.

José, agora somos nós que te dizemos: “Encontramo-nos noutro sítio.” Até lá, a luta continua.

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