Violação: quando os homens são forçados a penetrar
É necessário compreender que a violência sexual abrange um espetro alargado de experiências traumáticas e que ser “forçado a penetrar” também é uma forma de violação, mesmo que isso contrarie algumas noções estabelecidas.
Quando se fala em violação, talvez a primeira imagem que surja não seja a de um homem ou rapaz que é forçado a penetrar. Na dinâmica mais reconhecida, o homem é associado ao papel de violador, ou seja, é ele quem comete o crime com recurso a atos penetrativos. No entanto, além de sabermos que os homens e rapazes também podem ser vítimas, é necessário compreender que a violência sexual abrange um espetro alargado de experiências traumáticas, e que ser “forçado a penetrar” também é uma forma de violação.
A realidade de ser “forçado a penetrar” não é tão reconhecida pelo grande público como outros temas relacionados com violência sexual, e pode não ser aceite por muitas pessoas precisamente por contrariar algumas das noções previamente estabelecidas. Isto deve-se a vários fatores, nomeadamente à desinformação que existe sobre violência sexual em geral, seja ela contra mulheres ou contra homens, mas também devido aos vários mitos e crenças sobre esta forma de violência.
Não há sequer muita literatura sobre esta forma de abuso. Por exemplo, no Reino Unido só em junho de 2017 foi publicado o primeiro estudo no qual 154 homens partilharam as suas experiências em que foram forçados a penetrar.
Forçado a penetrar: da infância à idade adulta
Esta forma de violação pode acontecer nas diferentes fases de vida. Durante a infância, o abusador pode coagir duas ou mais crianças a terem contactos sexualizados entre elas, levando, por exemplo, a que um menino penetre uma menina ou outro menino. Para esta criança, a experiência não deixa de ter contornos traumáticos, somente porque foi ela quem penetrou. É errado pensar que, por ter sido levado a ter esse papel, isso reduzirá o impacto traumático.
Todo o abuso é potencialmente traumático para as crianças que passaram por ele. No entanto, por ter sido forçado a penetrar, este menino pode interiorizar que teve um papel participativo e ativo, e, por isso, foi responsável pelo abuso de outra criança. Esta interiorização gera sentimentos de culpa e de vergonha e é um legado bastante cruel, pois ele não compreende as estratégias de manipulação do abusador que proporcionaram tais contactos, as mesmas estratégias que também garantem o silenciamento das vítimas.
Assim, é comum haver homens sobreviventes cuja intimidade é desencadeadora de mal-estar e de ansiedade disruptiva. São sobreviventes que evitam contactos sexuais por terem receio de ocupar o lugar de abusador/violador, pois, desde que foram vítimas de abuso e forçados a penetrar outra criança, associam os atos penetrativos à violência sexual, mesmo quando são consentidos entre duas pessoas adultas. No fundo, apesar de não serem abusadores, o medo e a associação errada entre tais atos e o abuso, impede-os de investirem em relações íntimas.
É uma narrativa que precisa de ser desconstruída com apoio especializado para que depois o homem possa retomar uma vida íntima e sexual saudável e que não seja geradora de mal-estar.
Mulheres que abusam
Sabemos que a maioria dos homens e rapazes sobreviventes são alvos de abusos por outros homens, maioritariamente heterossexuais, mas também há mulheres que abusam, existindo contornos de género que têm de ser considerados. Nestes casos, os estereótipos associados aos papéis de género reforçam ideias erradas e contribuem para o silenciamento dos homens vitimados. A crença de que as mulheres são mais fracas e, por essa razão, ser forçado a penetrar não é de todo possível, ou o mito de que os homens estão sempre disponíveis para sexo e que cada oportunidade para ter sexo com uma mulher é uma “benção” estão na génese da invisibilização desta forma de violação, até entre as próprias vítimas.
No referido estudo do Reino Unido, realizado por Siobhan Weare, umas das estratégias mais comuns usadas pelas mulheres que abusaram foi o recurso à chantagem e ameaças (22%). Ou seja, disseminar mentiras sobre o homem, ameaçar terminar com a relação ou ameaçar espalhar rumores sobre o homem e pressioná-lo verbalmente após ter dito que não foram algumas das formas identificadas para forçar a penetrar. 14,4% dos homens referiram ainda ter havido recurso à força, nomeadamente usar o peso do próprio corpo para aprisioná-lo, prender os braços dele ou mesmo usar uma arma. Contrariamente a algumas expectativas, o recurso ao consumo não consentido de substâncias psicoativas foi identificado apenas por dois dos 154 participantes.
Não foi sexo, foi violação
Sobre a forma como os homens falam sobre estas experiências, vários participantes (33) referiram-se à mesma como “violação” e apenas dois usaram o termo sexo para descrever a sua experiência, demonstrando que há um reconhecimento desta forma de violência sexual e também das consequências a nível emocional e psicológico. 74,5% não procuraram apoio para lidar com o impacto e os efeitos negativos gerados por estas experiências, o que levanta algumas questões, nomeadamente sobre os estigmas que os homens sentem em procurar apoio por terem sido vítimas de violência sexual.
Quando falamos de violência sexual nenhuma vítima deve ser excluída, seja com base no sexo da vítima ou do abusador, ou com base nas particularidades da sua história de abuso. Também não é produtivo hierarquizar casos de abuso, pois reforça a ideia errada de que há formas mais traumáticas e nefastas do que outras. Esta comparação resulta na minimização e desvalorização de determinados casos de abuso em detrimento de outros, conduz ao silenciamento das vítimas, nomeadamente nos casos sem atos penetrativos, e reforça a crença de que há vítimas mais “merecedoras” desse estatuto do que outras, e também dificulta a procura de apoio e o processo de superação do trauma.
Quando alguém é vitima de violência sexual, é importante reconhecer como experienciou todo o episódio ou episódios, se foi traumático para si e quais as consequências geradas. É aí que julgo ser importante centrar o nosso foco: no impacto traumático que o abuso tem nas vítimas para que nenhuma mulher ou homem acabe excluído. Nesse sentido, precisamos de reconhecer e falar abertamente sobre ser “forçado a penetrar”.