Violência sexual contra crianças: vamos criar as condições para denunciar?

O prazo para denunciar crimes sexuais é divergente quando analisamos o plano internacional, mas há uma tendência: o aumento do prazo prescricional.

Comecemos pelos factos: uma em cada cinco crianças é, foi ou será vítima de violência sexual. Se pensarmos numa turma com 25 crianças, são cinco crianças vitimadas. Numa escola com 10 turmas, serão cerca de 50 crianças que, durante a sua infância, serão vítimas de alguma forma de violência sexual.

Também sabemos que a maioria destas crianças não partilha a sua história de abuso. Na verdade, a grande maioria só consegue falar sobre o abuso 20 ou 30 anos depois de os crimes terem ocorrido, já em idade adulta. No entanto, nesse momento já não é possível denunciar o abusador, uma vez que o direito à queixa prescreveu.

A violência sexual é uma experiência potencialmente traumática que pode ter consequências devastadoras na vida e no desenvolvimento das crianças. Hoje, vou falar sobre a impossibilidade de denunciar o crime quando as vítimas se sentem preparadas para fazê-lo.

Em Portugal é possível denunciar crimes sexuais contra crianças até cinco anos após a vítima menor atingir a maioridade, ou seja, até aos 23 anos de idade. No entanto, esta janela temporal é insuficiente e como consequência os abusadores não são investigados e continuam livres para abusar de mais crianças.

Esta foi a minha história, mas não estou sozinho. Quando tinha 10 anos fui abusado sexualmente e nunca tive coragem de contar a alguém o que aconteceu. Quando finalmente reuni a força necessária para o fazer, tinha 30 anos e fui denunciar. Fui, então, informado de que já não havia nada a fazer: o prazo tinha prescrito e aquele homem continuaria livre para abusar de mais crianças. Tal como eu, muitas das vítimas abusadas na infância denunciam, não por si, mas para tentar parar o abusador de continuar a abusar de outras crianças. Porém, não encontram um sistema legal que permita fazê-lo.

Avançar nos direitos humanos das vítimas 
O prazo para denunciar crimes sexuais é divergente quando analisamos o plano internacional, mas há uma tendência: o aumento do prazo prescricional. Há vários países que reconhecem e respeitam o tempo das vítimas, como é o caso do Reino Unido, Islândia, Canadá, Nova Zelândia e Austrália.

Em qualquer um destes países o Código Penal não apresenta limites de tempo para denunciar e qualquer vítima de crimes sexuais na infância pode apresentar queixa quando se sentir preparada, independentemente da sua idade atual. Estes são exemplos de leis centradas no reconhecimento do impacto e das consequências que esta forma de violência tem nas vidas das vítimas, dos diferentes constrangimentos associados e são desenhadas para garantir os direitos humanos das vítimas. São esforços para salvaguardar a segurança e as condições necessárias para as vítimas exercerem o seu direito (fundamental) à queixa.

Na União Europeia os Países Baixos não têm prescrição para crimes cuja pena seja igual ou superior a oito anos, o que inclui os crimes de violação e abuso sexual de menores. Na Alemanha a prescrição é de 20 anos após a vítima atingir os 30 anos de idade, alargando até aos 50 anos o limite para denunciar qualquer crime sexual ocorrido na infância. Em França o prazo é de 30 anos após as vítimas atingirem a maioridade, isto é, até aos 48 anos de idade. Em Espanha, por sua vez, entra em vigor em junho a nova lei em que o prazo começa a contar a partir dos 35 anos de idade (contra os 18 anos anteriores que então vigoravam). Na prática, as vítimas terão até aos 40 anos para denunciar casos ligeiros e 50 para os graves.

Considerando o panorama internacional e o progresso de vários países, Portugal não pode ficar sem avançar nestas matérias. É por esta razão que a Quebrar o Silêncio, juntamente com a AMCV e a deputada não inscrita Cristina Rodrigues, se reuniram para impulsionar o progresso no nosso país, fazendo o nosso Código Penal acompanhar esta evolução internacional. A proposta é clara: aumentar o limite prescricional para a denúncia dos crimes sexuais ocorridos na infância, para que o prazo não seja uma barreira à queixa-crime e à investigação de abusadores de crianças.

Enquanto sobrevivente de violência sexual e profissional que trabalha com vítimas, considero que esta é uma proposta fundamental para fazer avançar os direitos humanos das vítimas. Resta saber se Portugal reúne as condições necessárias para assumir este compromisso.

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