Como É Sentir-se Livre não é uma pergunta, é um documentário sobre mulheres negras no entretenimento
Alicia Keys produz esta série, mas não é o nome mais sonante desta história: Nina Simone, Lena Horne, Diahann Carrol, Pam Grier, Cicely Tyson e Abbey Lincoln são os ícones que ajudam a contar, num documentário de dois episódios no canal Odisseia, o caminho das negras na indústria do entretenimento.
O som do jazz ou das secções de metais das big bands, os vestidos e a elegância das vozes e belezas de Hollywood embalam esta história de luta. Tal como Hattie McDaniel foi a primeira negra a ganhar um Óscar, mas não pôde estar na mesa da equipa de E Tudo O Vento Levou na cerimónia pela cor da sua pele (e venceu com um papel racialmente estereotipado), Como É Sentir-se Livre conta uma história de progresso matizada pelos pesos vários da representação. A série documental em dois episódios de Yoruba Richen estreia-se sábado às 22h30 no canal Odisseia.
Como É Sentir-se Livre tem produção de Alicia Keys, cantora norte-americana cujo estrelato mainstream serve de cartão de visita mais imediato para o documentário. Mas a música é também uma das entrevistadas deste título que mistura conversas actuais com entrevistas de arquivo, imagens de filmes ou actuações emblemáticas rumo a um único fim: mostrar como seis mulheres e seus percursos contam uma parte da história do século XX mas também ilustram a luta pelos direitos civis e pela igualdade de oportunidades (e contra o racismo) da sociedade em geral. São elas Lena Horne, Abbey Lincoln, Nina Simone, Diahann Carroll, Cicely Tyson e Pam Grier.
“As artistas negras abriram caminho”, refere Alicia Keys no início do primeiro episódio depois de a actriz e cantora Abbey Lincoln contar as suas aventuras actuando com o vestido vermelho e sinuoso de Mariyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras (1953) – “bom, o que é que isso faz de mim?”, pergunta-se sardonicamente Lincoln. Keys descreve as seis figuras em que se centra o documentário como “seres humanos credíveis que defenderam a igualdade e a justiça. É esse o espírito do activismo e a forma como a arte e a política se cruzaram”.
Realizado por Yoruba Richen, autora de The Green Book: Guide to Freedom, POV: Promised Land, Independent Lens: The New Black, The Killing of Breonna Taylor, este título surge na esteira de um movimento. “Nesta altura de ajuste de contas racial sem precedentes, e quando Hollywood está a reavaliar o seu papel na perpetuação dos estereótipos racistas, é a altura perfeita para contar as histórias destas mulheres que abriram caminhos e que inspiraram gerações de superestrelas negras – como Keys, Halle Berry, Issa Rae, Ava DuVernay e Lena Waithe”, diz Richen à estação pública norte-americana PBS, que exibiu este documentário, e que participam no dito com as suas vozes e testemunhos. Lena Waithe explica, num tom que só olhar para o seu rosto pode descodificar, que não foi baptizada em honra da actriz (branca) Lena Dunham, mas sim da pioneira afro-americana Lena Horne.
Nestes dois episódios de cerca de uma hora, desfilam não só estas caras femininas conhecidas mas também rostos masculinos igualmente reconhecíveis (como o omnipresente Samuel L. Jackson) e de académicas como a musicóloga Tammy Kernodle, que ajuda a descodificar Greenwich Village como “enclave artístico” mas também uma “incubadora de activismo” na década de 1930, por exemplo. Neste episódio dedicado ao “Despertar Político”, recorda-se por exemplo o pungente momento em que no Café Society, clube nocturno criado no final dos anos 1930 e o único integrado fora do Harlem, Billie Holiday estreou Strange Fruit, a canção sobre linchamentos de negros nos EUA, em 1939.
How It Feels To Be Free: Black Women Entertainers and the Civil Rights Movement, de Ruth Feldstein, está na base deste documentário (o segundo episódio é transmitido no sábado dia 27 às 22h30). Feldstein também é uma das cicerones deste título, ajudando a perceber como o pioneiro contrato com um grande estúdio de Lena Horne está ligado ao contributo dos negros americanos para a força militar dos EUA na II Guerra Mundial. Horne rejeitava interpretar criadas, por exemplo, mas sentiu que apesar do seu estrelato e pioneirismo, acabou por ser à mesma enfiada numa caixa tipificada – a que não tinha muito por onde ir.
Cicely Tyson, Nina Simone, Diahann Carrol ou Pam Grier foram por aí fora, continuando neste caminho tortuoso, trabalhoso e que a espuma dos dias da história só deixa ver o lado mais glamoroso. “Quando vejo uma mulher negra em qualquer tipo filme ou televisão, é um acto de protesto”, diz a certa altura a realizadora, escritora e produtora Sharon Lewis. “Porque sei quanto tempo demora e quanto tem de se lutar para sequer chegar lá.”