A violência obstétrica não é uma invenção de um “grupo de mulheres alternativas”
Quantas vezes já lhe contaram histórias aterrorizadoras de partos traumáticos? Quantas frases absolutamente inimagináveis é que já ouvimos, algumas sei que lhe foram ditas a si quando nascemos, e algumas a mim, 23 anos depois!
Querida mãe,
A guerra dos termos em redor do que é e não é a violência obstétrica não pode servir de desculpa para desvalorizar as queixas das mães em relação à forma como foram conduzidos os seus partos. Nem é sério varrê-las para debaixo do tapete com o argumento de que – felizmente – não resultam na morte da mãe ou do bebé, ou que foram feitos grandes avanços médicos em obstetrícia.
A ciência evolui e o entendimento do que são boas práticas também, mas para isso é preciso profissionais dispostos a ouvir as mulheres, a respeitá-las e a aceitar que o conhecimento das mulheres do seu próprio corpo é válido.
Quantas são as mulheres que a mãe conhece pessoalmente que receberam procedimentos médicos no parto sem serem informadas do que estava a acontecer, sem que — muito menos — tenham dado o seu consentimento? Quantas vezes já lhe contaram histórias aterrorizadoras de partos traumáticos? Quantas frases absolutamente inimagináveis é que já ouvimos, algumas sei que lhe foram ditas a si quando nascemos, e algumas a mim, 23 anos depois! Quantas intervenções desnecessárias são feitas por dia em obstetrícia, e se alguém tiver dúvidas basta-lhes ver a taxa de cesarianas nos hospitais privados e compará-la com a dos hospitais públicos, que têm ainda por cima os casos mais complicados (e mesmo a taxa do público é demasiado elevada).
Desenganem-se os que pensam imediatamente que este protesto vem de um “grupo de mulheres alternativas que queriam era ter os partos numa piscina ou em casa, e que acham que os hospitais são o demónio”. Não, aquilo de que aqui estamos a falar é da dignidade e do respeito a que todas as famílias têm direito, e é transversal a todas as mulheres grávidas. O pior é que, como em todas as formas de abuso, as vítimas muitas vezes culpam-se a si próprias. O pior é que sem informação não sabem que podia ser de forma diferente. E tentam minimizar a experiência, acreditando/convencendo-se de que “teve de ser pela saúde do meu bebé”. Mas, muito provavelmente não foi assim, e as marcas ficam, as repercussões físicas e emocionais ficam, e muitas vezes só quando escuta os testemunhos de outras mulheres que passaram pelo mesmo ou que tiveram direito a um parto noutras condições, compreendem a dimensão do que lhe foi feito.
Algumas conseguem procurar histórias diferentes nos partos subsequentes, outras evitam a gravidez porque não suportam a ideia de passar pelo mesmo, e há aquelas que entram no hospital com um gigantesco nó na garganta rezando para que “Desta vez não seja tão mau”. Eu fui uma das mães com sorte, que procurou um parto melhor depois de uma cesariana altamente traumática e uma segunda cesariana com intervenções que hoje sei serem totalmente desnecessárias. Quando o fiz encontrei as pessoas mais incríveis do mundo, que há anos andam nesta luta, encontrei sítios onde tratar uma mulher sem respeito ou fazer-lhe um toque sem sequer lhe pedir, é impensável. Pessoas que dedicaram a vida a ajudar mulheres a recuperar, a sarar as suas feridas físicas e psicológicas, e a evitar que sofram novos traumas.
Há muitas mas, mãe, destaco a Cristina Pincho (doula e especialista em amamentação International Board Certified Lactation Consultant-IBCLC), a Dra. Soraia Coelho (fisioterapeuta pélvica), a Dra. Mariana Torres (obstetra e influencer, pela qual vale mesmo a pena deixarmo-nos influenciar) e o querido e incomparável obstetra Dr. Hermínio Nicolau que revolucionou a obstetrícia em Portugal sempre de sorriso na cara. A esses e a todos os organizadores desta causa: Obrigada!
Ana,
Fazes bem em agradecer. A revolução na forma como se nasce em Portugal só pode ser feita por dentro, por aqueles que têm conhecimentos científicos e experiência profissional para credenciar as mudanças que todos desejamos. E precisam do apoio e do “reforço positivo” das mães, para manterem a determinação de continuar a lutar por elas.
A luta vem de longe. Não te lembras, porque eras muito pequenina, mas no início dos anos 1990, a revista Pais & Filhos, de que eu era directora, convocou um grande encontro no Fórum Picoas, em Lisboa, para discutir “Como se nasce em Portugal” — três partos e inúmeras reportagens em maternidades deixavam-me segura de que era uma urgência.
Quando lá fores a casa pede-me que te mostre a edição da revista que fizemos com os testemunhos de centenas de mães — que a Ordem dos Médicos (OM) de então nos fez o favor de não desvalorizar —, com entrevistas a especialistas e muitos bons exemplos pioneiros, e vais ver que, infelizmente, os lamentos não diferem tanto quanto deviam daqueles que, mais de três décadas depois, escutamos.
É claro que muito mudou, e nem imaginas como celebro o uso da epidural!, mas mesmo então, como agora, a queixa prevalente prendia-se com a relação humana (ou ausência dela), a falta de empatia, a arrogância de quem tem literalmente a faca na mão e não está habituado a partilhar decisões com o “doente”, na chantagem emocional, no desprezo (“Se chora agora, não sei o que será quando as dores começarem a sério!”), na humilhação (“As boas mães aguentam tudo”) — e que não venha o senhor bastonário dizer que não são verdadeiras, porque as ouvi com os meus próprios ouvidos. E é esse abandono, essa incompreensão que faz feridas mais fundas, feridas de que é difícil apresentar queixa a um colégio da especialidade, ou fazer passar pelo crivo de um tribunal. Por isso calamos, e calamos envergonhadas quando vem uma OM dizer que são minudências comparadas com o que realmente está em causa: a vida do nosso filho.
Por isso concordo contigo. A definição dos termos pode ser relevante em termos legais e, inclusivamente, competir à OM fazê-la em resposta a um projecto de lei, mas não nos vamos perder neles. Nascer em Portugal, dar à luz em Portugal pode vir a ser uma experiência muito mais positiva do que aquilo que é, e todos temos de trabalhar nesse sentido. Merece ainda uma grande birra, e cá estaremos para continuar a fazê-la.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.