Eutanásia: a legalização da liberdade face à vida e à morte

Assim felicito, pelas razões elencadas, a legalização da eutanásia. Quem é contra, por ter orientações contrárias à mesma, continuará, e ainda bem, a não ser obrigado a fazê-la. Quem é a favor, passará a ter também o direito de cumprir a sua vida conforme as suas convicções.

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LUSA/MIGUEL A. LOPES

O resultado da votação desta sexta-feira, que aprovou de forma inequívoca a eutanásia, sendo que o texto ainda irá seguir para Belém, marca estruturalmente a concepção colectiva majoritária de existência individual na sociedade portuguesa.

Antes de discutir o que é — para mim — o mais essencial desta decisão, remato já dois aspectos que marcaram o debate. Em primeiro lugar, a lei será suficientemente abrangente na resolução das necessidades dos utentes, inerentes à ausência da eutanásia no SNS até ao momento, e idealmente restritivas nas condições necessárias para ser aplicada. A tal “rampa deslizante” é impossível de se aplicar aqui, pois um debate de décadas e a aprendizagem com outros exemplos assim o permitiram. Em segundo lugar, como se verifica nos exemplos que temos, levantar a questão dos cuidados paliativos torna-se inútil porque ambas não são incompatíveis, quer porque os paliativos não solucionam todas as situações de sofrimento incurável, quer porque o sentido da eutanásia está muito para além de um diagnóstico para explicar essa dimensão, passo para o essencial.

Muitos se surpreenderam pelas posições do PCP ou do PSD. Creio que só se surpreenderam porque assumiram que esta era uma questão de absoluta ideologia política. Enganaram-se. O que a eutanásia deixa em debate são questões puramente filosóficas, que concernem ao sentido da vida, à relação da existência com a essência, ao controlo que o ser tem da sua liberdade.

Como é evidente, qualquer pessoa cujos valores seguem uma matriz filosófica cristã muito ortodoxa não pode ser senão contra a eutanásia, pois ela representa a transferência do controlo da vida para o ser-em-si, rejeitando que a essência precede a existência, que o ser é controlado e determinado pelo divino, que a vida seja um “milagre”. São contra e são coerentes consigo próprios. Neste sentido, não aceito discursos populistas de diabolização do “Não”, porque quem os tem revela estar mesmo muito mal preparado para discutir a eutanásia.

O essencial da questão da eutanásia é então um debate filosófico. A sociedade portuguesa demonstra hoje ter uma visão mais existencialista (ou “sartriana”) das questões que acima levantei, rejeitando visões cristãs de si mesma que historicamente a moldou. Trata-se, por isso, da materialização de uma alteração estrutural que se verifica na nossa matriz intelectual colectiva e é isto que, fundamentalmente, faz do dia de hoje uma data muito importante, pelos vários debates e perspectivas futuras que pode motivar sobre a sociedade portuguesa.

Sou, sem orgulho nem vergonha, ateu e isso marca indubitavelmente a minha matriz filosófica que serve de ponto de partida para reflectir esta matéria. Aliado a isso, defendo a exaltação da liberdade individual, ainda que inevitavelmente delimitada, por relação, pela colectiva. Entendo, por isto, que o controlo da vida humana deve residir na mesma. É a existência que permite a essência e não o contrário. A vida humana ganha efectivamente significado quando alcança a liberdade de se definir em si mesma e só o faz se estiver plenamente consciente das suas limitações, dos seus determinismos, aceitando as angústias que daí advêm e, por isso, não entregando o controlo destas para um domínio externo —, ou seja, controlar até a sua não-liberdade. Sim, até mesmo no fim da liberdade o ser deve ser livre. Mais: ter o controlo de uma situação de não-liberdade é mesmo o que permite afirmar que o ser é efectivamente livre. Tão livre que, se o entender, pode deixar de o ser, neste caso, optando pelo final da vida quando não há cenário possível que a torne digna, isto é, livre. Porque não tenho qualquer crença num prolongamento divino da vida ou num sentido da mesma que é já adquirido antes de esta sequer existir, tenho o direito de querer ter a opção de controlo da vida durante o único período de duração que lhe prevejo, o único que lhe pode dar razão de ser.

Nesse sentido, se, conforme define a lei agora aprovada, estiver numa situação de impossível cura e sofrimento certo e definitivo, tiver as considerações favoráveis de médicos especialistas que me garantem a certeza disso mesmo (e uma maior liberdade, na medida em que tornam a minha posição mais informada), não estiver em situação de inconsciência (ou seja, ainda em controlo da minha liberdade), ter a possibilidade de reflectir e voltar atrás na minha posição (garantindo uma acção ciente e livre de decisões momentâneas), então estarei efectivamente com o controlo absoluto da minha existência. Serei, de acordo com as orientações filosóficas que me norteiam sempre a acção, completamente livre.

Assim felicito, pelas razões elencadas, a legalização da eutanásia. Quem é contra, por ter orientações contrárias à mesma, continuará, e ainda bem, a não ser obrigado a fazê-la. Quem é a favor, passará a ter também o direito de cumprir a sua vida conforme as suas convicções.

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