Santa Casa da Misericórdia na corrida para gerir sala de consumo assistido no Porto

Instituição concorre com consórcio liderado pela APDES, envolvida há vários anos no projecto de sala de chuto do Porto. Propostas estão a ser analisadas pelo júri e decisão deve estar para breve

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Projecto para sala de consumo assistido está aprovado na Câmara do Porto desde 2020 Daniel Rocha

A Santa Casa da Misericórdia do Porto lidera um dos consórcios que concorrem à gestão do Programa de Consumo Vigiado de Drogas no Porto e que irá instalar, junto a Serralves, uma sala de consumo assistido amovível. As propostas dos dois consórcios concorrentes foram entregues no final de Julho e estão neste momento na fase final de análise por um júri presidido por Henrique Barros. O gestor do programa eleito firmará um contrato com a Câmara do Porto, que irá assegurar 270 mil euros para operacionalizar o projecto-piloto, com a duração de um ano.

António Tavares, provedor da Santa Casa da Misericórdia, justifica o interesse da instituição no concurso com o facto de este ser “um problema com uma expressão muito grande na cidade”. “É importante dar dignidade às pessoas, não as obrigando a fazer consumos na via pública e em condições pouco dignas, e também a quem contacta com estas pessoas”, disse ao PÚBLICO.

A instituição, argumenta, tem já alguma experiência na área da toxicodependência, nomeadamente através do envolvimento no Porto Feliz, programa de Rui Rio que em 2002 prometeu a “erradicação” dos arrumadores de carros, maioritariamente toxicodependentes, da cidade. Na altura, a Misericórdia aliou-se ao município disponibilizando camas no Hospital Conde Ferreira, para onde toxicodependentes recolhidos das ruas eram enviados para tratamento.

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Projecto-piloto tem a duração de um ano e sala amovível será instalada na Viela dos Mortos, nas traseiras de Serralves. Nuno Ferreira Santos

A parceria causou “perplexidade” ao então director da Direcção Regional do Norte do Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, José Gonzalez, que meses depois de o Porto Feliz ser lançado arrasava a Câmara do Porto e o seu plano de acabar com os arrumadores em dois anos. Numa nota de imprensa polémica, Gonzalez escrevia que “existindo camas suficientes, entre públicas e convencionais, para desintoxicações”, o protocolo com a Misericórdia provocava “perplexidade a quem tem de gerir (bem) os serviços públicos”. O Porto Feliz acabaria por terminar em 2007, depois de João Goulão, à época presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência (extinto em 2012), tentar renegociar o protocolo com a Câmara do Porto, considerando que era necessário adequá-lo à legislação actual e diminuir o apoio financeiro, “muito superior” ao vulgar. 

Desta vez, a estratégia da Santa Casa – que firmou parcerias com a Norte Vida e a Médicos do Mundo, até então no consórcio que esteve na origem desta solução e também concorre à gestão da mesma – passa por delinear “uma resposta o mais integrada possível”, fazendo uso de outras “valências” da instituição, garante António Tavares. A “expectativa” do provedor é que a sala de chuto, que terá um projecto-piloto de um ano e uma segunda fase de dois anos, com um Espaço para Consumo Vigiado Móvel, comece a funcionar ainda este ano.

Garantindo não ter por base uma resposta assistencial, o provedor diz querer promover a junção de várias áreas para apoiar os consumidores, desde a saúde ao emprego, passando pela habitação. “Estamos a concorrer ao 1º Direito para reabilitar um bairro onde estas pessoas podiam ter uma habitação transitória, durante um ano, para organizarem a sua vida”, exemplifica. 

Lógica comunitária

O consórcio concorrente é liderado pela Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES) - que ainda em 2018 esteve envolvida na primeira proposta para instalação de uma sala de consumo na cidade e que esteve neste processo desde o início -, e é composto pela SAOM, Arrimo, Cruz Vermelha e APF, contando também com a parceria da CASO, da Faculdade de Psicologia e da Saber Compreender. 

Contactado pelo PÚBLICO, José Queiroz, director executivo da APDES, não quis comentar a entrada da Santa Casa na corrida, por o processo estar neste momento a ser analisado pelo júri. Mas sublinhou que o sucesso desta resposta, que deve ser concertada com outras, depende também do modelo adoptado pelo gestor. E o “risco” de algo correr mal existe.

“Assusta-me que a sala seja usada como um factor de dissuasão do consumo em vez de se centrar nas necessidades do indivíduo", aponta o psicólogo, rejeitando uma “lógica de medicalização dos consumos assistidos" e defendendo “uma lógica mais comunitária, onde todos os actores envolvidos directamente ou independentemente na sala de consumo são ouvidos e convidados a participar, em diferentes níveis, na gestão do dispositivo, e onde os pares e os movimentos de base comunitária, como a CASO e a Saber Compreender, possam desempenhar um papel importante.”

Em 2017, o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto estimava, num estudo encomendado pelo município, que a cidade tivesse 847 consumidores de drogas ilícitas. À data, o bairro do Aleixo era o principal local de consumo a céu aberto, com 352 utilizadores identificados, e a cocaína e heroína eram as drogas mais procuradas, de forma fumada ou injectável. Um outro estudo, de 2019, da Administração Regional de Saúde do Norte, indicava que existiam cerca de 600 consumidores de drogas a céu aberto no Porto.

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