Nas cidades portuguesas o aumento do preço dos combustíveis é um tema inescapável dos últimos dias, mas há uma fatia da população urbana à qual ele diz pouco: os idosos que já não conduzem e andam a pé – e que agradeceriam ter menos carros a roubar-lhes espaço, até nos passeios – e aqueles que dependem do transporte público, porque não ganham para ter um carro ou para o usar todos os dias, e que agradeceriam ter menos automóveis a atrasar-lhes as carreiras. Os restantes estão a sofrer. Muitos porque ainda não têm alternativa, e dependem mesmo do carro, outros porque trabalham em sectores como o da logística e transportes, por exemplo. Outros porque, podendo escapar a este embate, simplesmente não se conseguem imaginar a movimentar-se de outra forma. 

É para estes que escrevo, hoje. Enquanto pessoa com uma deficiência física, também eu imaginei, durante anos, que só de carro conseguiria ser autónomo. Mas, em 2018, e apesar de vivermos, então, na periferia de uma cidade, decidimos, numa família de quatro, com duas crianças, abdicar de um dos veículos que tínhamos, e passar a incorporar a bicicleta em algumas deslocações. O que parecia difícil, num primeiro momento, tornou-se, com o tempo, não apenas mais fácil do que imaginávamos, mas uma verdadeira fonte de prazer. Sim, tirando alguns momentos complicados, de interacção com pessoas que se recusam a partilhar o espaço público, o caminho de casa para a escola, de casa para o comboio, dos avós para casa, tornou-se não apenas numa “deslocação”, mas um dos melhores momentos do dia, para os quatro. 

À minha volta, e por nos verem assim felizes, vários amigos e amigas, alguns conhecidos e outros quase desconhecidos decidiram experimentar esta mudança, em vários pontos do país. Não sei se o fizeram por motivos ambientais, pelo dinheiro que poupariam – e que estão a poupar mais, agora – ou pela saúde que ganhariam – e que se nota desde logo nos quilos que alguns perderam. Sei que, ao falar com eles, todos aludem ao prazer que sentem por se terem libertado dessa obrigação de ir de carro para todo o lado, do prazer que sentem por voltar a ouvir os pássaros na rua, por voltarem a reconhecer a paisagem e a gente que passa, que a 15 km/h o nosso olhar abarca tudo. Pelos vistos, a ciência já estudou esta sensação, que é mais comum do que eu imaginava, como se pode ver por este artigo, em inglês

Estas pessoas, nalguns casos, têm automóveis. Dependem é menos deles, e são mais felizes por isso. A crise que estamos a passar, e que por vários motivos terá vindo para ficar, afecta-os menos. Não são melhores que os outros. Sentem-se é melhor, com menos stress, por perceberem que um objecto tão simples, com quase 200 anos de história, pode, para além de fonte de prazer, ser uma ferramenta útil, para amenizar uma má fase. Há 50 anos, perante duas crises petrolíferas, os holandeses, que estavam a abrir ruas para que lá coubessem mais carros, como nós temos vindo a fazer, reagiram dessa mesma forma, e foi aí que recuperaram, em força, o velho hábito de pedalar para o trabalho

A questão é que, quando a crise acabou, eles não recuaram, até porque, pelo meio, houve protestos contra a insegurança e a falta de condições para quem escolhia ir de bicicleta. Protestos que, mobilizando muita mais gente, me vieram à memória quando vi imagens da manifestação em defesa de uma ciclovia em Almirante Reis, em Lisboa, esta semana. Foi com políticas persistentes, desafiadoras de hábitos entretanto enraizados, que os agora designados Países Baixos criaram, com o tempo, cidades menos poluídas, e mais amigas das pessoas. Mesmo daquelas que, antes, lutaram contra isso. 

A outra crise do momento, a climática, impele-nos a fazer esse caminho para uma vida urbana com uma pegada ecológica menor e com menos emissões. Mesmo devendo solidariedade a quem não tem, de facto, alternativa, se andarmos mais a pé, de bicicleta, de transporte público ou de outras maneiras mais sustentáveis fosse, por cá, a consequência desta crise, sairíamos dela uma sociedade melhor. E menos susceptível a sofrer tanto, com a crise energética que vier a seguir.

O momento é desafiante, e é por isso que, agora, regressaremos à sua caixa de correio, com os Pés na Terra, todas as semanas. Até à próxima cartinha, fique com mais algumas sugestões de leitura:

  1. Apesar das promessas verdes, as emissões continuam a aumentar em 2021;
  2. Spencer Tunick continua a fotografar nus para nos captar a atenção: desta vez o tema é o Mar Morto;
  3. Quer aliviar o stress? Procure uma paisagem terapêutica;
  4. Levar as nossas embalagens reutilizáveis ao Take Away vai ser cada vez mais comum;
  5. Mas o melhor para o planeta é mesmo aproximarmos os locais de produção e consumo de alimentos.