Só seremos livres quando as crianças o forem também

Somos dos países com as medidas mais extremas e rigorosas no que diz respeito à infância/juventude. O exemplo de excelência tem que estar alinhado com a forma como tratamos e defendemos as nossas crianças.

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Há muitas coisas que nos definem na vida enquanto seres humanos. A nossa infância, quem nos criou, as nossas crenças, quem somos enquanto profissionais, enquanto amantes, enquanto amigos... um rol infinito. Este texto escrevo-o na qualidade de mãe (e sim, ser mãe é já por si só uma qualidade), não em representação de outras mães, mas para dar voz aos que mais precisam neste momento — as crianças. As que tenho sob minha responsabilidade são só duas, as que precisam que falemos por elas e expressemos a nossa indignação nos tempos que correm, são milhares.

Sempre achei peculiar esta fascinação do ser humano em ser o primeiro, em ser o melhor, em se destacar. “Somos o país com menos casos”, “somos o país com menos mortes”, “fomos os primeiros a vacinar”, “somos os mais vacinados do mundo!”... e por aí fora. Este mês, Portugal é mencionado em vários meios de comunicação de excelência, em diferentes partes do mundo, pela sua exímia campanha de vacinação e pelo profissionalismo com que combateu a pandemia. É caso para se ter um enorme orgulho do nosso país.

Enquanto mãe, simplesmente não consigo. Já dizia Oscar Wilde que deve-se sempre jogar de forma justa quando se tem as cartas vencedoras. Pois bem, todas as conquistas deste ano e meio perdem valor, quando vemos e vivemos as decisões tomadas referentes a crianças e aos jovens, não só durante a pandemia, mas principalmente nesta fase final de desconfinamento. Somos dos países com as medidas mais extremas e rigorosas no que diz respeito à infância/juventude. O exemplo de excelência tem que estar alinhado com a forma como tratamos e defendemos as nossas crianças.

Há anos, era eu ainda criança, a minha mãe trouxe-nos um texto, a mim e ao meu irmão mais velho, e pediu que o lêssemos juntos. O título era complexo e parecia pesado e chato: Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Torcemos o nariz, reclamamos, mas ela não arredou pé. Explicou-nos a enorme importância daquele documento internacional que tinha sido pensado pela primeira vez no início do século, por uma activista reformista Eglantyne Jebb, e que servia para proteger cada uma e todas as crianças do mundo. Ideias finalmente proclamadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Novembro de 1959. Trinta anos depois, em 1989 estes direitos tornaram-se uma norma e ganharam o nome de Convenção Internacional Sobre os Direitos das Crianças.

Parecia complicado, mas era simples, e tão essencial. Disse-nos então, a nossa mãe, que ia transformar este documento numa peça de teatro para crianças e assim o fez, cada direito transformou-se em música e linguagem para a infância e tivemos durante meses em cartaz, uma bela peça sobre os Direitos da Criança. Nunca mais os esqueci

Conto esta história, porque há um ponto em particular, desta tão célebre e famosa declaração, que tem sido ignorado e negligenciado nestes tempos que passamos. É o ponto 2., que dá à criança e ao jovem o direito a uma especial protecção para que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. A importância fundamental que se quer aqui é o interesse superior da criança, nada mais.

Onde estão estes direitos quando se permite que bebés sejam ‘largados’ à porta de creches para que se afeiçoem a uma qualquer educadora de máscara, que nunca antes viram? Também não pode ser indiferente a ninguém a ascensão do número de jovens a dar entrada nos hospitais por conta de depressões e tentativas de suicídio, devido, quiçá em parte, aos meses sem fim de isolamento, distanciamento e privação de tantos direitos que só a escola, os amigos, a vida em grupo pode dar. E ainda sobre as máscaras, que foram tornadas opcionais em quase todo o país, mas continuam a ser obrigatórias em crianças com mais de 10 anos/2.º ciclo, quando estão dentro das salas de aula (maior fatia dos seus dias). Para não falar na surrealidade de todas as semanas, os delegados de saúde enviarem centenas de crianças para casa em isolamentos profilácticos absurdos e sem sentido. A cereja no topo do bolo que já se vê ao virar da esquina, é a discriminação, já tão latente, de crianças que não estão vacinadas vs as que estão.

Mas não desesperemos! Afinal, já podemos dançar até de manhã abraçados uns aos outros!

Desde 12 de Março de 2020, data em que a covid-19 chegou oficialmente a Portugal e começaram os tempos de calamidade, estado de emergência, decretos e coisas afim, passaram-se à volta de 580 dias. Para um adulto, a ideia de tempo na passagem destes meses sem fim, pode ser subjectiva, com perdas grandes ou pequenas, alterações do foro psicológico, mortes ou novas vidas, menos viagens, mais cabelos brancos ou peso adicionado à balança. Foi um tempo que passou e do qual agora temos de lidar com os seus despojos, nos reinventar e reconstruir. Para um jovem de 15 anos (considerado criança pela OMS), por exemplo, estes dois anos de que falamos, são essenciais, são um tempo que não volta mais, que representa uma fatia enorme de uma memória vital em representação da vida.

No primeiro confinamento escrevi para o PÚBLICO um “diário da quarentena”. Era um relato cheio de romantismo e esperança. Estava fechada em casa, em lua-de-mel privilegiada com os meus próprios filhos, a pandemia obrigou-me a parar e a notar a minha própria vida, a vivê-la noutra passada. Não haja dúvida, foram as crianças que me levaram e me deram forças a cada dia daqueles meses sem fim, com a sua resiliência, a sua capacidade de enfrentar condições adversas, o bom humor e as gargalhadas —até as birras e os momentos mais difíceis... não descarto nada. Agora é tempo de fazermos o mesmo por elas. Não aceitemos. Não nos adaptemos. Responsabilizemo-nos. Lutemos pelos direitos das crianças. Não seremos livres enquanto as crianças não o forem também. 

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