As representações simbólicas

O aspeto mais importante da representação simbólica é constituir uma forma de comunicação visual e de criação de uma identidade partilhada nos grupos sociais.

Sabe-se com elevado grau de confiança que a nossa espécie biológica, o Homo sapiens, surgiu no período entre 300 e 200 mil anos, em África. Porém, apesar dos grandes esforços desenvolvidos, restam muitas incógnitas sobre a filogenia dos Hominídeos, dado que a população era muito pequena, da ordem de dezenas de milhares, e os fósseis que restaram são raríssimos. Mas é uma história fascinante porque permite reconstruir as nossas origens e perceber qual foi o ponto de partida da nossa evolução cultural. Desde o aparecimento dos humanos não houve evolução biológica significativa e os nossos genes são essencialmente os mesmos de há mais de 200 mil anos.

Um processo crucial na evolução cultural dos humanos foi descoberta da representação simbólica por meio de gravações de desenhos abstratos em pedras, pinturas rupestres nas paredes de grutas e rochedos ao ar livre, e mais tarde sob a forma de pictogramas, alfabetos, números, sinais, símbolos, textos escritos, figuras e imagens de toda a espécie produzidas e oferecidas nos mais variados suportes materiais — pedra, argila, madeira, papiro, papel, livros, fotografias, filmes, sistemas digitais, tais como o telemóvel, computador, televisão e muitos outros. Note-se que, embora os media atuais consigam produzir informação e conteúdos que reproduzem de forma tão fiel e perfeita quanto possível uma realidade elegida e observada diretamente, os produtos disponibilizados ao consumo constituem uma representação simbólica devido à distância que os separa da vivência direta da experiência humana reproduzida. Por outras palavras, a comunicação humana verbal e/ou visual é sempre simbólica. Na nossa época da informação e comunicação digitalizada a quantidade e a diversidade da representação simbólica verbal e visual é tal que todos esses dados imediatamente acessíveis são considerados dados não estruturados que podem ser analisados por via digital para produzir informação e conhecimento, ou seja, um outro nível de informação e conhecimento, que não nos é diretamente acessível. Esta extraordinária transformação acelerada foi possível com o mesmo “hardware” biológico. Como será o futuro? Comecemos pelo que se conhece das origens.

Os primeiros registos de representação simbólica que se conhecem têm entre 100 a 70 mil anos e foram encontrados na Gruta de Blombos na costa da África do Sul perto do Cabo Agulhas. Os artefactos encontrados na gruta são variados e incluem desenhos geométricos gravados em pedras de ocre, um fragmento de osso gravado, contas de colares feitas de conchas, instrumentos de osso e instrumentos líticos muito avançados para a época. Vários autores consideram que dada a complexidade, diversidade e idade, estes artefactos representam os primeiros sinais visíveis de pensamento simbólico e são indicativos da emergência da capacidade de falar (Huybregts, 2017). É provável que esta capacidade se tenha desenvolvido antes da separação da população humana, entre 150 e 100 mil anos, em dois grupos. Um deles, mais numeroso, constituiu os antepassados das populações Coissã, que se mantiveram no sul de África e ainda hoje habitam parte da Namíbia, Botswana e sul de Angola; e outro, muito menos numeroso, distribuiu-se por África, tendo parte dessa população emigrado para a Eurásia, Austrália e Américas (Kim, 2014).

A representação simbólica figurativa mais antiga que se conhece é uma figura humana com cabeça de leão (um teantropo, ou seja, um ser mítico parte humano e parte animal) feita em marfim de mamute datada de há cerca de 40 mil anos e encontrada à entrada da gruta de Hohlenstein-Stadel, na Alemanha, juntamente com um vasto espólio de artefactos. Mais tarde, a partir de há cerca de 32 mil anos, assistiu-se ao florescimento da pintura rupestre na Europa Ocidental desde a Península Ibérica aos Urais, de que são exemplos notáveis, sob o ponto de vista da nossa estética atual, as grutas de Lascaux, Pech Merle e Chauvet em França; e Altamira em Espanha. Mas, em 2020, descobriu-se que o mesmo tipo de representação simbólica surgiu antes e a uma grande distância da Europa, na Indonésia, mais precisamente em grutas da região cársica de Maros-Pangkep no sul da ilha de Celebes. Trata-se de várias pinturas figurativas do porco das Celebes (Sus celebensis) e de teantropos, aparentemente numa cena de caça, as mais antigas datadas de 45,5 mil anos. É muito provável que estas pinturas tenham sido feitas pelo Homo sapiens, que terá chegado às Celebes entre 60 a 50 mil anos, mas ainda não se encontraram fósseis dessa época. Conhecem-se grutas em Espanha com pinturas abstratas datadas de há mais de 50 mil anos, quando o Homo sapiens ainda não tinha aí chegado, feitas pelo homem de Neandertal, mas essas representações extinguiram-se com ele. Embora haja ainda muito por descobrir pode concluir-se que a cultura da representação simbólica praticada pelo Homo sapiens surgiu em várias regiões do mundo entre 50 e 30 mil anos e floresceu na Europa. Desconhecemos as causas de não ter surgido em outras regiões do mundo e ainda sabemos muito pouco sobre o significado das representações simbólicas nas grutas do Paleolítico Superior na Europa.

Porém, já se avançou um pouco. Representam principalmente animais de diferentes espécies de forma bastante fiel e sobretudo de perfil. As pinturas não se encontram em locais normalmente habitados pelos humanos. Pelo contrário, encontram-se nas zonas de mais difícil acesso das grutas, onde a escuridão é total e é necessário pintar à luz das tochas. É frequente encontrar pinturas que parecem terem sido inspiradas pelo zoomorfismo ou antropomorfismo das paredes da gruta na tentativa de atingir representações tridimensionais. As representações humanas são mais raras e quando surgem são fragmentadas. Encontram-se mãos, narizes, caras deformadas, vaginas, pénis, seres humanos incompletos e teantropos. As pessoas não são representadas com a mesma intenção de reprodução fiel e precisa da forma e essência que é utilizada para os animais. Os animais têm a proeminência e parecem emergir como metáforas dos humanos, dado que a razão de ser essencial da representação simbólica eram os humanos, a sua vida social e os grupos sociais. As figuras humanas aparecem geralmente em artefactos móveis sob a forma de esculturas que se podiam transportar para fora das grutas tais como o homem-leão de Hohlenstein-Stadel, e as inúmeras Vénus, tais como as de Dolni Vestonice, Lespugne, Willendorf, Moravany, Mezine e Monruz. Nas paredes encontram-se também muitos desenhos abstratos, alguns deles característicos deste período de arte rupestre e que se repetem em muitas grutas como é o caso dos sinais claviformes. Outro aspeto importante é a organização iconográfica das representações simbólicas de sinais abstratos, sinais antropomórficos e painéis de animais, incluindo a sua composição, nas paredes, tetos e topografia das grutas. Toda esta complexidade sugere que estamos perante a expressão de pensamentos simbólicos que podiam ser usados para desenvolver, transmitir e partilhar uma visão estruturada do mundo baseada em alguns princípios fundamentais. Apesar de estarmos muito longe ou mesmo impossibilitados de decifrar esses princípios, é provável que eles constituíssem aquilo a que muito mais tarde designámos por um cânone cultural ou religioso.

Note-se que não foi um cânone passageiro, durou cerca de 22 mil anos numa vasta área da Europa (Testart, 2016), muito mais tempo do que a nossa civilização atual que emergiu da Revolução Agrícola há cerca de dez mil anos. Durante esses 22 mil anos, os utensílios de pedra lascada, os instrumentos de caça e pesca, os adornos e as práticas sociais evoluíram muito mas as características essenciais da arte rupestre mantiveram-se. Sabe-se que as grutas eram visitadas regularmente por gerações sociais sucessivas de caçadores-coletores. A grupa de Chauvet foi habitada em dois períodos de cerca de 3000 anos com início há 37 mil e 32 mil anos. Durante cada um deles é provável que cerca de 150 gerações sociais tenham visitado a gruta e partilhado o valor social e intergeracional das representações simbólicas e a visão do mundo que sintetizam. Há cerca de 21 mil anos a entrada da gruta colapsou e selou-a até ser descoberta em 18 de dezembro de 1994. Foi este acidente que permitiu a extraordinária conservação das pinturas até aos dias de hoje.

O aspeto mais importante da representação simbólica é constituir uma forma de comunicação visual e de criação de uma identidade partilhada nos grupos sociais. Para além de falar o homem do Paleolítico Superior descobriu uma forma nova de comunicar com os outros e não apenas com os da sua geração social. Essencialmente uma forma de comunicação que permanece no tempo e aspira à intemporalidade. Refletir sobre a transformação do valor humano da representação simbólica, desde o cânone primordial das pinturas rupestres dos caçadores-coletores do Paleolítico Superior, passando por variadíssimos estados intermédios, até chegar aos produtos cada vez mais abundantes e diversificados da cultura desenvolvida com a revolução digital, é um desafio. A principal diferença encontra-se na relação com o tempo. Os produtos de representação simbólica que se consomem na cultura atual são em geral efémeros, para consumo imediato e rápido, de preferência imateriais e facilmente perecíveis. Outra característica importante é que a grande maioria dos conteúdos que circulam hoje em dia na internet não se destinam a comunicar algo informativo e com algum valor conceptual que tenha durabilidade temporal: destinam-se ao entretenimento, recreação, diversão, distração, lazer e desenfado e mais de 60% são vídeos e jogos. A procura destes produtos, desenhados com grande precisão para satisfazer o prazer volúvel, imediatista e efémero, é insaciável o que confere um enorme poder às grandes empresas tecnológicas, em especial as chamadas “Cinco Assustadoras”: Alphabet (Google), Amazon, Apple, Facebook e Microsoft.

Quanto aos conteúdos informativos, notícias, comentários e análises, os media “mainstream” e os media “alternativos” oferecem uma variedade estonteante de visões e interpretações do mundo frequentemente contraditórias. Perante esta diversidade conflituante a reação mais frequente e mais fácil é a fidelização a uma narrativa que simplifica a interpretação do que acontece a nível local, nacional e mundial, sem cuidar de tentar compreender as outras narrativas, a complexidade dos problemas e a razão de ser das divisões e filiações. Algumas das narrativas opõem-se à ciência publicada nas revistas científicas internacionais com sistema de arbitragem por pares, como tem acontecido no domínio das alterações climáticas e da pandemia da covid-19. O imediatismo e a simplificação das narrativas têm tendência a quebrar as amarras que nos ligam aos valores e à memória do passado. No limite pretende-se enfrentar o futuro sem o fardo das raízes culturais no passado. As guerras culturais são consideradas uma dinâmica essencial de libertação do passado que trará um futuro novíssimo e impoluto.

A visão dominante que transparece da imensa cacofonia da representação simbólica atual é o progresso científico e o extraordinário progresso tecnológico, a intensificação e uniformização dos valores materiais produzida pelo consumismo globalizante, a desvalorização dos valores sociais, éticos e culturais, o declínio das populações indígenas que ainda resistem, a deslocação das populações rurais para as zonas urbanas em busca de bem-estar e prosperidade económica, o progresso do egoísmo racional, a violação dos direitos humanos, o aumento das desigualdades socioeconómicas, o aumento da migração dos países com economia em desenvolvimento para os de economia avançada para fugir à pobreza, aos conflitos armados, à degradação ambiental e climática, e a sobreexploração dos recursos naturais. Mas transparecem também outras visões mais luminosas do ponto de vista da sustentabilidade: a existência e o desenvolvimento de muitos movimentos, organizações e políticas por todo o mundo que lutam contra a pobreza e as desigualdades, pela defesa dos direitos humanos, pela preservação dos valores éticos e culturais, pela defesa do património cultural, histórico e artístico, pela proteção dos indígenas, pela conservação da biodiversidade e do ambiente e pelo combate às alterações climáticas. Restam os grandes conflitos geoestratégicos cujo protótipo dominante é o que opõe os EUA à China. Resta ainda um valor mitológico, solitário e essencial que suporta o cânone atual – a tecnologia.


O autor escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários