Setembro não é apenas um mês, é o aniversário sempre presente de quando um dia saí de Portugal. É como se a vida começasse de novo, disseram-me, e muito bem, um dia. Uma nova vida, contra vontade, assim como contra vontade foi a saída de mais de meio milhão de portugueses para o estrangeiro em plena “troika” há dez anos.
Não saímos por querer, mas porque a isso fomos obrigados. E, quem sabe por teimosia, saudade ou dor, ou um pouco dos três, insistimos em nunca mais esquecer. Como se estivéssemos zangados com o nosso país, com as nossas origens, com o compadrio, a precariedade, a falta de dinheiro para o dentista e para os óculos e portanto a fome, a cegueira, na minha terra é tudo tão caro, mas também o desemprego, a ausência de tudo, de futuro, de trabalho, de esperança, de vida, uma casa e uma família, memórias por cumprir, sempre por cumprir.
Mas também zangados com os que ficaram para trás porque podem ficar para trás, porque conhecem alguém, porque são espertos e nós somos parvos, ou então orgulhosos por não querer ficar a dever favores a ninguém, ao mesmo tempo independentes, homens e mulheres como os nossos pais sonharam um dia por nós mais o sacrifício de anos em prol desta prole a vingar, não obstante vingar lá fora.
Perdoem-me. Perdoem-nos. Estávamos zangados. Tristes. Ressentidos. Apesar da vida, agora sim, do futuro, pois claro, finalmente nas mãos. E não é mentira nenhuma quando todos os dias, e à força de dolorosas beliscadelas, obrigo-me a acreditar estar onde estou, dez anos depois na direcção de uma escola em Londres.
As vitórias, as conquistas, no entanto, nunca fizeram sentido na hora de partir, quando inexoravelmente o último dia de férias chegava, e chega, ao fim segundos antes de entrar para o avião. É ver o mundo escancarado a rir na nossa cara. É a vida de joelhos outra vez. É o trauma, só pode ser o trauma, de voltar ao início sem nada à partida e muito menos à chegada. É o medo e a incerteza. E os punhos crispados de lágrimas.
E não sei se por ser da idade, também é da idade, mas igualmente da pandemia que nos afastou a todos, mas a verdade é que depois de um ano sem poder voltar a casa, depois do primeiro Natal a dois como se os dois fossem os últimos sobreviventes na Terra, não eram, tínhamos o bacalhau, a verdade, dizia eu, foi a de nascermos outra vez quando este Verão não acreditámos na nossa sorte ao voltar a casa!
Ainda comprámos uma segunda passagem de avião para dali a dez dias, não fosse a vida trocar as voltas, mas não foi preciso e Agosto foi mesmo Agosto por inteiro de volta a casa, aos pais e irmãos, aos amigos, à praia, ao mar, ao sol, à sardinha e à cerveja, ao azul sem fim e sem nuvens, ao calor, ao bronzeado, à bola de berlim e ao palmier coberto, aos trilhos de bicicleta, ao pão alentejano e ao queijo.
Mas se ao chegar não acreditámos na nossa sorte, agora, e mais do que nunca, acreditamos. Assim como acreditamos que partir já não é partir e a saudade já não é saudade, é antes a certeza de quem vai voltar ainda a tempo de retocar este bronzeado na pele, outra e outra vez. Partir não é uma derrota, é o melhor dos dois mundos, é o fim da saudade tantos anos depois. Hoje, já não temos pena de partir. Ao contrário, vamos cheios de vontade de viver.
Viver mais dez anos lá fora, ou talvez 20, que a brincar a vida já vai a meio e o regresso só mesmo para a reforma e na reforma. Porque apesar do tempo que insiste em passar, não vejo os jovens de hoje de modo algum mais esperançados se comparados com os jovens que um dia fomos.
No mundo dos colaboradores e da precariedade e onde o inglês ainda é a língua franca, preocupam-me as fronteiras cada vez mais fechadas depois de duas décadas com o Reino Unido entre os principais destinos de emigração portuguesa.
E o milhão de empregos neste momento disponíveis em solo britânico? Infelizmente, estão disponíveis, sim, mas apenas para quem já cá está. E se hoje quisesse sair de Portugal não poderia sair de Portugal. Com conhecimentos rudimentares de Francês e pouco mais, emigrar não seria uma opção.
E sem opções, resta o conformismo. Ou a luta. Os próximos dez anos? Para muitos serão passados na rua de megafone em punho e nós também.