Não importa quem errou no Afeganistão
Ninguém deveria passar por aquilo que estas pessoas estão a passar. Todos aqueles que, legalmente, deveriam ter acesso ao sistema de pedido de asilo e ser reconhecidas como beneficiárias do estatuto de refugiado e sobrevivente num contexto de emergência e protecção internacional. E nós, portugueses, o que podemos fazer a partir do conforto e segurança das nossas casas e vidas?
“Carolina, nunca te esqueças de que podes viajar, envolver-te e entregares-te a um país, mas tens sempre uma mochila de segurança: a do país onde nasceste. A dos teus pais. A do teu privilégio. Afinal, és uma mulher livre, e eu não”. Corria o ano de 2010 e Shwepta partilhou estas palavras comigo. Era uma de 60 escravas de sexo, com quem trabalhei, no calor de Margao (Região de Goa, India).
Não precisamos das imagens de 640 pessoas num avião de carga no aeroporto de Cabul, no Afeganistão, para nos apercebermos e nos lembrarmos do privilégio que temos. Ou será que precisamos? Observamos como duas horas da história recente do Afeganistão podem significar um retrocesso de séculos: magistradas com medo apagam os seus casos; profissionais afegãs que estavam a trabalhar em organizações internacionais tornam-se alvos de uma hora para a outra; intérpretes que são deixados/as para trás pelos EUA temem pela sua vida; irmãos e irmãs que conhecemos cá em Portugal renunciam ao país onde nasceram, porque não querem viver num Afeganistão liderado por um grupo terrorista que não respeita convenções de direitos humanos, não reconhece humanidade no outro, e despreza o papel da mulher na sociedade.
Podemos discutir a situação política do Afeganistão, a incapacidade de um Estado em life support há dois séculos incapaz de lidar com ameaças internas e externas, a falhada experiência democrática que causou um prolongado conflito militar que matou milhares de pessoas e custou 822 mil milhões de dólares aos EUA. Até podemos discutir a estratégia equivocada na contenção das forças taliban na região. Há quem queira apontar o dedo, encontrar culpados – nos EUA, na Rússia —, mas a verdade é que não importa quem errou no Afeganistão: erramos todos se ignorarmos uma das maiores crises humanitárias nos nossos tempos.
Porque, independentemente da nossa visão sobre este tema, não nos esqueçamos do mais importante: todos somos seres humanos e temos a capacidade de reconhecer a humanidade no outro mesmo que a sua realidade seja diferente da nossa e o dever de ajudar o próximo. Neste caso concreto, de ajudar os refugiados do Afeganistão.
O que é asilo? Qual é o princípio de não rejeição? Quem deve ser reconhecido e protegido como refugiado? Como imaginar uma pessoa que foge do seu país com medo? Com medo de não poder ser, simplesmente?
Imaginem o que seria isso acontecer no nosso país. Não conseguimos, pois não? Não é “próximo o suficiente”. Estas são noções complexas presentes em questões antigas e contemporâneas. São do ontem e do hoje, infelizmente do amanhã também. A Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 continua a ser a referência internacional mais relevante neste contexto, e ajuda-nos a compreender estas questões e a apelar à nossa responsabilidade de garantir alívio e segurança a pessoas em situações de extrema vulnerabilidade.
Porque ninguém decide agarrar-se à asa de um avião em descolagem sabendo que vai possivelmente morrer se não estiver desesperado, como foi o caso de Zaki Anwari, de 19 anos, que jogava para a equipa nacional juvenil de futebol. Ninguém entrega o seu filho bebé a militares, por cima de uma vedação de arame, sabendo que possivelmente nunca mais o vai ver, somente para ter a certeza de que ele viverá.
Ninguém deveria passar por aquilo que estas pessoas estão a passar. Todos aqueles que, legalmente, deveriam ter acesso ao sistema de pedido de asilo e ser reconhecidas como beneficiárias do estatuto de refugiado e sobrevivente num contexto de emergência e protecção internacional.
Temos observado os esforços incríveis por parte da sociedade civil para responder a esta crise humanitária perante a inacção de muitos governos de países de todo o mundo. Temos visto empresas com a AirBnb a oferecer alojamento a 20 mil pessoas em necessidade, um movimento de veteranos norte-americanos sem financiamento do Governo a organizar-se para resgatar os intérpretes deixados para trás, uma onda de solidariedade para mover donativos para refugiados recém-chegados em países como o Reino Unido.
E nós, portugueses, o que podemos fazer a partir do conforto e segurança das nossas casas e vidas?
- Informação: podemo-nos manter informados, seguindo variados canais de notícias nacionais e internacionais, certificando-nos de que este assunto não cai no esquecimento mesmo quando já não for novidade;
- Donativos e solidariedade: podemos doar para o Comité Internacional da Cruz Vermelha, que ajuda feridos, apoia hospitais, previne violações de direitos humanos e contribui para a distribuição de água e saneamento no Afeganistão. Só nos últimos seis meses, ajudaram mais de 300 mil pessoas;
- Acolhimento: podemos acolher um refugiado em casa através do projecto de acolhimento e integração de crianças refugiadas e das suas famílias em Portugal da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), através do site da PAR ou junto de autarquias, igrejas ou escolas;
- Participação activa: podemos escrever ao Governo português para pedir concretamente que colabore na retirada de pessoas do Afeganistão e receba refugiados o mais depressa possível, mostrando que os portugueses e as portuguesas querem um Governo pró-activo e solidário à imagem de todos e todas nós;
- Ser voluntário: podemo-nos inscrever como voluntários num centro de acolhimento para refugiados a partir do Conselho Português para os Refugiados (CPR).
Porque hoje o Afeganistão pode não ser “próximo o suficiente”. Mas qual é a medida exacta da distância que nos deve impelir a agir? Também podemos ajudar nesta: a do sofrimento alheio.