Carolina, por que não há mais médicos como ela?

Sabem aqueles caixotes de cartão que trazem a letras garrafais: “Frágil”? É como se dentro desses caixotes viéssemos nós. Estamos a um passo de quebrar.

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"A dor tem a vantagem de nos relativizar a vida. De tornar secundários até alguns protagonistas. Somos todos iguais nus. Nunca vi ouro numa cama de hospital"

Talvez Carolina tenha 60 anos, mas a idade dela é irrelevante. Tem idade suficiente para já ter visto muita vida a acontecer e outra tanta a acabar-se ali diante dos seus olhos.

O sofrimento a que assistimos acaba, mesmo sem querermos, por nos dar força. Entristece-nos ali no imediato, aquele segundo em que sustemos as lágrimas e um nó se apodera da garganta como se um camião ficasse preso dentro de um túnel. É isso que sinto de cada vez que sustenho as lágrimas. A dor depois cresce para dentro. Ficará ali até ser uma memória. A vida são essas memórias que coleccionámos sem querer. Sem nunca termos ido buscar a caderneta. Sem nunca querer acabar esta colecção. Nunca. Qual será a última memória que acaba a caderneta?

Carolina chega cedo ao hospital. É prática. Adapta-se aos doentes que tem pela frente. Fala a linguagem deles. Trata-os logo pelo nome e a seguir, depois das perguntas que nos lembram que é médica, pode fazer humor com uma situação complicada. Fala sem hesitar. Volta para perguntar coisas aparentemente triviais que dizem muito mais do que pensamos do estado de um doente.

A equipa dela admira-a e os doentes, esses, ficar-lhe-ão gratos por ela se lembrar de pormenores que facilmente escapam e se diluem nos corredores largos de um hospital.

Carolina, nas minhas viagens longas de ida e volta, faz-me pensar no mundo e nos hospitais e nos gabinetes que já visitámos tantas vezes. Quando nos perguntam “então, de que é que se queixa?” antes de nos perguntarem o nome. Como nos sentimos hoje. A ‘perguntinha’ da queixa é um formulário rápido sobre a nossa vida. Não chega. Apetece-me dizer: não trouxe caneta para responder a isso.

Na verdade sei do que me queixo: de não haver mais médicos como ela.

Estou naquele hospital como companhia e ouço no quarto ao lado a filha que chega e tenta fazer uma voz forte e diz: “Mãe vamos falar com o João. Não é para chorar, mãe.” E a mãe chora. Chora muito. Está desorientada. Deixou de ser mãe para ser filha. Os papéis inevitavelmente invertem-se um dia.

Talvez não cheguem a falar com o João. Mais tarde verei aquela filha sair do hospital num vai e vem de esperança que às vezes nos empurra para a frente e outras vezes nos corta as pernas.

Carolina segue com a sua brigada. Resolve, facilita, ela é um deles. Não está interessada em que a reconheçam. Há muito que decidiu que a vida dela passaria por estar ali a cuidar de quem precisa. Faço um comentário elogioso sobre ela a uma enfermeira que me diz: “Sou suspeita mas adoro-a.”

Venho espreitar aos corredores onde vejo caras com máscaras em momento de pausa. Um cansaço espelhado nos vidros que me lembra, uma vez mais, da nossa vulnerabilidade.

Sabem aqueles caixotes de cartão que trazem a letras garrafais: “Frágil”? É como se dentro desses caixotes viéssemos nós. Estamos a um passo de quebrar.

Carolina está sempre em movimento. Passo no corredor e vejo-a de costas num momento em que ao computador, prescreve, consulta. Ajuda outra vez.

Vou vê-la num dia em que termina o trabalho depois de ter passado muitas horas ali entre vidas e já não está de bata. É uma mulher de óculos, cabelo liso, roupa escura, veste a humanidade coisa que me derruba e comove. É indiferente que tenha a bata ou não. Sai dali e mantém-se em contacto com a sua equipa. Telefonará a perguntar pelos pacientes, pela senhora que não falou com o João, por todos os que ocupam a ala onde poderia estar escrito: Frágil.

A dor tem a vantagem de nos relativizar a vida. De tornar secundários até alguns protagonistas. Somos todos iguais nus. Nunca vi ouro numa cama de hospital.

À medida que a linha do tempo se estreita, aumenta a minha incapacidade para lidar com pompas e fretes. E nas viagens de ida e volta colecciono memórias onde já só cabe gente como a Carolina. Gente inteira que mete a mão ao bolso e saca da humanidade para que ela nunca se perca. Os inteiros que não perguntam: “Então, de que se queixa?” mas nos olham para dentro à procura da tristeza e se lembram do nosso nome todos os dias.

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