Dois anos de Ti(ta)
Vieste no mês do sol, o mês em que sempre atingi o pináculo da felicidade, rebentar a escala desse índice. Vieste, mais uma vez, facilitar as festas de anos: menos convidados, mas mais mergulhos.
Quando falamos de bebés e crianças pequenas, especialmente na condição de pais, sentimos necessidade de lhes reconhecer características que se costumam elogiar nos adultos. A sua imensa generosidade. A sua eloquência, a sua inteligência. A sua destreza, a sua resiliência, a sua coragem, a capacidade de lutarem pelo que querem, a sua força interior. Olhando-te agora a dançar descoordenada ao som do Panda, ou, há pouco, numa birra desbragada porque não te deixei entornar o champô no tapete, torna-se forçado desenvolver um elogio assente nas tuas incontáveis qualidades enquanto ser humano. Não falo só de ti, mas de qualquer criança de dois anos. Há muito por onde pegar, mas é prudente evitar o elogio das competências morais e intelectuais destes seres que ainda não processam uma frase e poucas mais contribuições materiais acrescentam ao mundo do que nódoas irremovíveis. Não me interpretem mal. O que há para falar vai além de quaisquer aptidões que possamos admirar num nosso semelhante. O que há para falar quando falo de ti é de amor. De um amor que nasceu e só cresce, independentemente de qualquer outra coisa. Este é o ponto. Amar-te sem “mas” nem “porquê”. Sabemos que amamos assim quando resvalamos para a piroseira.
Fazes dois anos. Como mãe, claro que tenho uma lista dos teus atributos e conquistas, mortinha por exibi-la a todos e colher os louros dessas tuas capacidades tão precoces. Poderia falar dos teus olhos azuis enormes que reflectem o mar e que não param de me encantar. Ou da minha vontade de te ostentar, uma característica comum nas mães que tem tanto de orgulho cego e desmedido como de narcisismo por, ainda, algures em si, terem a concepção de que um filho é uma extensão sua e não uma existência própria. Sim, requeremos alguns direitos pelo facto de vos termos expelido do útero por entre gritos e sangue e fluidos. Sim, queremos alguma compensação pelos quilos a mais, pelas estrias e pelas olheiras. Então, erguemos-vos, quais troféus bochechudos, perante tias opulentas que vos afagam entre onomatopeias afectuosas. Sorrimos a quem pede para espreitar para a alcofa e nos sorri de volta, uma qualquer desconhecida que nos transmite uma certeza insuspeita de que fizemos muito pelo mundo por lhe ter trazido um ser tão luminoso.
Tenho a certeza (ou a esperança) de que passarei a vida a maravilhar-me com o que tiveres para me mostrar, com as habilidades que vais desenvolver, com a personalidade que irás formar sob os meus olhos, como me tens maravilhado desde o dia em que chegaste. Irei acompanhar-te em cada triunfo e vibrar como vibrei ao ver-te pores-te de pé num mundo que se desequilibra. Mas, por agora, quero que saibas que o amor já é o nosso ponto de partida. Tudo o resto será lucro. Já te amo mesmo antes de fazeres todas as coisas que te irão dizer que terás de fazer para seres amada. Que possas perceber que o amor não é condição negociável, que já nasceu contigo. E o único desejo que tenho é que não o vás perdendo com o tempo, qual vasilha cheia com água da fonte. Que nunca ta façam deixar cair. E que, se te desequilibrares, te recordes de que podes sempre voltar à fonte e encher o cântaro. É amor que vejo reflectido nos teus olhos, que sinto nos teus abraços, que explode nos teus risos.
És a segunda filha. Uma segunda avalanche quando ainda recuperava da primeira. Um parto num pós-parto, um ser que nasce enquanto outro ainda mama. Não adianta salientar que não foi planeado, quem me conhece sabe que não sou planície fértil para planos, mais cordilheira rochosa onde se vão anunciando novas curvas em cima do acontecimento, que obrigam a uma guinada abrupta antes da estabilização até à curva seguinte. Ainda assim, vieste trocar-me as voltas. Foste um processo sem tempo para processar, um caminho em curso com um colo já ocupado. Já conhecia o tamanho da mudança para questionar como poderia ser amparo para tanta queda ou leite para tanta fome. É dito e repetido que o segundo filho é mais fácil, mas as sabedorias da maternidade são tão falíveis quanto a condição humana; e essa escola já a trazia da primeira filha. Questionava como poderia ser suficientemente mãe e ainda sobrar pessoa, como 24 horas albergariam as vossas e as minhas necessidades, os vossos e os meus sonhos.
Então, num ápice em comparação com a primeira, e se há sina para os segundos filhos é a eterna comparação, a barriga agigantou-se e estavas cá fora, com alguma pressa, sem quereres demorar-te em demasia, como se soubesses que eu sofria com o inchaço e o calor de Agosto, e quisesses, de alguma forma, amenizar o meu desconforto. Vieste desobedecer à data planeada e trocar-me mais uma vez as voltas.
Como tantas mães que vão ter um segundo filho, perguntava-me: será que cabe mais amor? Vieste mostrar-me que cabe. Que cabe mais amor, mais um carrinho no porta-bagagens, mais uma cadeirinha no carro. Cabe e transborda. Vieste no mês do sol, o mês em que sempre atingi o pináculo da felicidade, rebentar a escala desse índice. Vieste, mais uma vez, facilitar as festas de anos: menos convidados, mas mais mergulhos.
Com a tua irmã, a sala do hospital encheu-se, havia balões, crianças com videojogos, máquinas fotográficas, flashes em todas as direcções a encandear-me, eu que já estava encandeada o suficiente com a nova condição de mãe para conseguir digerir tudo aquilo. Quando, nesse teu movimento inesperado, nasceste ainda em Agosto, apanhaste todos de férias, longe, dando-me a conhecer uma recém-maternidade silenciosa. Passámos muito tempo só as duas no quarto, que desta vez se enchia, sim, mas daquele amor que eu estava a descobrir contigo. Ainda eras tu uma bolinha rosada e já me mostravas como dava para ser tudo mais descontraído. Parecia que me sussurravas: “Descansa, aproveita, relaxa.”
Desde então, ver-te crescer tem sido das coisas mais bonitas da minha vida. Tens tido a capacidade de tornar tudo melhor. Sem querer romantizar em excesso, porque mais um filho é mais um filho, vieste tirar-me a preocupação excessiva e fazer-me desfrutar. O desfrutar da tua vida que se inicia, e o desfrutar da minha vida que continua.
Agora vejo nos teus dois anos o começo de uma autonomia que me destrona da minha absoluta imprescindibilidade. Se já davas ares da tua independência desde sempre, a cada dia tenho aquela sensação aguda de te estar a perder mais para o mundo; não soubesse eu que nesta conta ficamos todos a ganhar.
Continuarei a fazer o que sempre me ensinaste tão bem, desde o início, no quarto da maternidade onde só estávamos as duas. Vieste para transformar o medo. Vieste para descomplicar tudo. Vieste ser o que eu nunca tive, uma irmã, e multiplicar esse amor que eu não sabia que cabia.
Não é coisa pouca dois anos de ti. São duas voltas completas ao Sol. São voltas e voltas da Terra sobre si mesma. Ainda mais voltas dos ponteiros do relógio. São voltas e voltas no carrinho, voltas a dançar o Panda, voltas no carro para te adormecer. Darás as tuas voltas. Eu estou-te para sempre agradecida por teres trocado as minhas.