Relação de Lisboa suspende pena a mulher condenada por mutilação genital. Prisão da mãe seria “um novo castigo” para a criança

Criança, agora com quatro anos, foi cortada na zona genital quando tinha um ano e meio, numa viagem à Guiné-Bissau

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Sara Jesus Palma

O Tribunal da Relação de Lisboa deu razão ao recurso interposto por uma jovem condenada pelo crime de mutilação genital feminina (MGF) e vai suspender a execução da pena de prisão decretada em Janeiro deste ano por ter permitido que a filha bebé fosse submetida à prática durante uma viagem à Guiné-Bissau. R. D. tinha sido condenada a três anos de prisão efectiva por um colectivo de juízes do Tribunal de Sintra, no primeiro caso de MGF que chegou a julgamento em Portugal.

No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), a que o PÚBLICO teve acesso, as juízas desembargadoras Conceição Gonçalves e Elisa Marques decidem “conceder provimento ao recurso interposto pela arguida, declarando-se suspensa a execução da pena que lhe foi aplicada pelo período de quatro anos”.

“O cumprimento efectivo da pena de três anos de prisão por parte da arguida não deixaria de representar um novo castigo para a sua filha de tenra idade, já por si fragilizada pelo sofrimento que lhe foi infligido, e a precisar da mãe para o seu crescimento”, escrevem as magistradas no acórdão do TRL, datado de 14 de Julho, acedendo a um dos argumentos do recurso em defesa “do interesse superior da criança”.

A menina, hoje prestes a fazer quatro anos, terá sido cortada na zona genital quando tinha um ano e meio, numa viagem à Guiné-Bissau, ficando com uma pequena cicatriz que foi classificada por um perito como MGF de tipo IV, uma forma atípica deste corte. Estima-se que residam em Portugal mais de 6500 mulheres com 15 ou mais anos já tenham sido vítimas de mutilação genital, e cerca de 1830 meninas com menos de 15 anos já terão sido submetidas a esta prática ou estariam em risco de o ser.

Aos juízes do Tribunal de Sintra, a arguida, hoje com 21 anos, negou sempre que tivesse cortado ou mandado mutilar a sua filha, enfatizando que é contra a prática da mutilação genital feminina. “Eu até agora não consigo imaginar isso”, afirmou a jovem durante o julgamento.

Enquanto a primeira instância viu especial gravidade no facto de que a arguida “não confessou o mal praticado” e “ainda não foi capaz de assumir a sua própria responsabilidade”, para a Relação de Lisboa, R.D. “entendeu, face ao seu contexto familiar, não confessar os factos”. As juízas do TRL consideram que a arguida é “uma jovem mãe, então com 19 anos de idade, incapaz de se sobrepor à pressão exercida pela sua família, encontrando-se num contexto de grande vulnerabilidade, sem condições para resistir às normas sociais impostas”.

Dado que a jovem não tem antecedentes criminais e considerando o peso que traria o afastamento da filha, a Relação considerou que não seria adequada a pena de prisão efectiva, que o Tribunal de Sintra tinha considerado necessária com base na exigência de “prevenção geral”, ou seja, enviando um sinal no sentido de prevenir a prática deste crime também em “crianças e adolescentes que se encontram em risco neste momento”. “Somos a discordar da decisão do Tribunal recorrido”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa. “Importa atender à personalidade revelada pela arguida, às suas condições de vida, vivendo com a sua filha ainda criança, no seu seio familiar.”

“Quantos patamares de discriminação pode uma mulher suportar?”

Ao PÚBLICO, o advogado de R.D., J. Gomes da Silva, diz estar “satisfeito” com a decisão do TRL de suspender uma pena que “teve o intuito de ser dissuasora”. “O propósito desse recurso foi suspender a pena, porque achámos que era uma pena excessiva, tendo em conta a idade, tendo em conta o percurso dela quando veio para Portugal, e tendo em conta a forma como o julgamento decorreu”, afirma.

“O próprio impacto da notícia já foi suficiente para aquela mulher”, acrescenta ainda o advogado. Ao ouvir a condenação, “tinha consciência de que o mundo tinha acabado de desabar, todo o mundo a falar de uma primeira vez na história em Portugal”.

“O tribunal levou em linha de conta muita coisa que pedimos, nomeadamente aquela dupla penalização da criança”, que “ficaria sem mãe e isso comprometeria o seu projecto futuro”, nota ainda J. Gomes da Silva.

“Não será através de prisão efectiva que ambas poderão sarar e prosseguir com as suas vidas para o futuro que a ora recorrente sempre desejou e acalentou e sonhou ao imigrar para Portugal”, referia o recurso, citado no acórdão do TRL. “Quantos patamares de discriminação pode uma mulher suportar, bem como a sua descendência feminina?”, lê-se na argumentação da defesa.

No recurso apresentado à Relação de Lisboa, a defesa sublinhava ainda que ao longo do julgamento “não ficou provado que a arguida tivesse conhecimento e dado o seu consentimento à referida intervenção sobre a zona genital da filha”, pelo que “se questiona como pode uma dúvida razoável quanto à existência (ou falta de) consentimento por parte da recorrente na prática da intervenção em causa redundar na pena de prisão efectiva da mesma”.

O crime de MGF tornou-se autónomo no Código Penal apenas em 2015, numa alteração legislativa decorrente da aplicação à legislação portuguesa da Convenção de Istambul, o tratado do Conselho da Europa de combate à violência doméstica e de género. Com Ana Henriques

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